Em uma entrevista, Nelson Rodrigues relata um dialogo tido entre ele e
Hélio Pelegrino em que este último dirige-se a ele e diz:
- “Nelson, o homem é triste porque
morre.”
A isso Nelson
Rodrigues responde:
- “Não, Hélio, o homem é triste porque vive.”
Há nas palavras de Hélio
Pelegrino a pressuposição de que o homem seja triste. Se quisermos apreender
melhor sua fala, deveríamos investigar o que é tristeza, o que é o homem, o que é causa, o que é a morte, o
que é a vida. Entretanto não dispomos de tempo nem de espaço para essas
investigações. Desse modo, propomo-nos a considerar duas das questões
levantadas: o que é a morte e o que é a vida. Não as escolhemos por termo-las
como fáceis ante as outras. Bem distante disso. Elas foram escolhidas porque
trazem as outras consigo naturalmente, e, de todo modo, são as que aparecem com
mais freqüência na corrente diária.
O que é então a morte? Não podemos definir essa palavra, senão em relação
a sua aparente face contrária, à vida. Se é assim, só podemos definir a morte
pelo que ela não é. E chegamos de fato a uma definição simples e rápida se
dissermos que a morte é a deixa da vida. Não cremos que estejamos errados em
dizer isso, mas não nos podemos deixar emaranhar na simplicidade da definição.
Um tanto antes dissemos que a morte só se define pelo que ela não é, ou
seja, pela vida. Por conta disso, a fim de apreendermos a morte, precisamos
saber não só o que é isso, não ser algo, como também o que é a vida. Quanto à
primeira questão, a melhor maneira de investigá-la é tomar aquilo que não é em
absoluto, o não-ser. Quanto à segunda, ela precisa esperar ainda um pouco por
sua ocasião. Agora nos cabe mostrar a dupla necessidade da investigação do
conceito não-ser com respeito à morte. Primeiro é necessário investigá-lo,
porque a morte só se define pelo que ela não é; em decorrência disso, temos a
segunda necessidade, a morte só se deixa definir pelo que ela não é, porque ela
mesma não é coisa alguma.
Como pode então Hélio Pelegrino falar da morte se ela não é? Na verdade,
ele comete um erro quando fala sobre ela, pois desconsidera sua não-essência.
Esse erro não é novo, contra ele já se levanta a deusa no poema de Parmênides
quando adverte seus súditos dizendo: “este caminho (do não-ser) eu te digo em
verdade ser totalmente insondável e inviável; pois não haveria de conhecer o
não-ente (pois este não pode ser realizado) nem haverias de trazê-lo à fala”
.
Mostra-se a nós nesse momento a urgência de tratar desse erro. Como pode alguém
intentar dizer o que não é? Por que a necessidade de advertência? Lidamos
quotidianamente com uma série de questões, mas de modo algum chega a nós
qualquer problema a cerca do que simplesmente não é. Levamos o quotidiano em
conta, porque tanto a deusa quanto nós em nosso texto, dirigimo-nos a homens,
nós aqui com muito mais direito que a deusa, pois somos do mesmo modo homens.
Dirigimo-nos a homens, assim como nós, de uma comunidade, isto é, na maior
parte do tempo, comuns. Enquanto tais, estranhamos que alguém nos advirta do
perigo de investigarmos o que não é. De todo modo, em respeito ao poema de
Parmênides, devemos dizer que a advertência parte de quem conhece o perigo,
para quem não o conhece. Em verdade, somente não sabendo do erro de investigar
o que não é é possível empreender sua investigação.
Como dissemos, é pouco provável encontrarmo-nos a nós mesmos ou a outros
investigando o que apenas não é. Não vemos ninguém perguntando o que é o não;
ou o que é o nada; ou o que é o fim; ou o que é o não-ser. Entre isso tudo,
vemos vez e outra quem se disponha a dizer a cerca da morte. Eis porque a
peculiaridade dessa palavra. Porque então é comum o discurso sobre esse que não
é, a morte? Certamente porque se comete um erro, o de considerá-la como se
fosse. A deusa no poema revela que o não-ser não pode ser trazido à fala, ele
é, portanto, indizível. Se é assim, o que dizem os que discursam sobre a morte?
Com certeza não a ela, já que ela não é. O que então?
Só sendo possível falar do que é, mesmo Parmênides em seu poema ao falar
a cerca do não-ser, fala referindo-o ao ser. Destarte, fala ele sempre o ser,
ainda que suas palavras procurem alguma referência ao não-ser. Seguindo-lhe o
exemplo, somente conseguiremos tirar algum proveito do dizer a cerca do que não
é, referindo-o ao que é. Tal proveito, contudo, é sempre tirado do que é, pois
somente ele é ferido. Temos de referir o nada ao algo; o não ao sim; o fim ao
começo; a morte à vida. Aquele que discursa sobre a morte, diz sempre a vida.
Entretanto, com não saber da inessência da morte, incorre em erro duplo: por um
lado não consegue dizer a morte, já que ela não é; por outro não diz a vida com
o devido respeito, já que não se sabe dizendo-a. Paradoxalmente, seu discurso,
ele sim, ganha uma aproximação da morte, em dizendo nada e, em seqüência, em
não trazendo nada à tona da palavra.
Que proveito, entretanto, é possível tirar do que é indo a isso por esse
desvio, pelo que não é? Com relação a isso, citamos Clarice Lispector que numa
de sua crônicas reunidas no livro
A Descoberta do Mundo escreve: “(...)
eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor o que não sei e – por ser um campo
virgem – está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e
melhor: é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não
sei é que constitui a minha verdade”.
“Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade”. Esta última frase
perdura ainda e fere a nossa indústria. Como pode justamente o não saber ser a
verdade, precisamente essa que pretende fundamentar todo saber?
Assim como para entendermos Hélio Pelegrino, apelamos a Parmênides; para
entendermos Clarice Lispector, precisamos apelar a Hegel. Em seu livro “Ciência
da Lógica”, escreve ele: “O começo não é o puro nada, mas um nada do qual algo
deve advir.”
.
A ajuda que essa citação nos traz é obtida se atentarmos para o verbo advir aí
empregado. Tudo aquilo que se determina a partir do começo, determina-se do
nada, não do ser, pois o ser é puro e permanece puro enquanto puro começo. O
nada, entretanto, que no princípio se confunde com o ser, ele sim desdobra-se
no que ele ainda não é. Considerando esse advento, estamos livres para dizer
que o proveito de um acesso sinuoso ao saber se dá do ainda não saber, do ainda
possível do saber. Isso que Clarice não sabe descreve sua possibilidade de
saber e enquanto tal é a sua verdade, pois daí advirão suas possibilidades de
sapiência. O que ela sabe delimita-se pela efetivação perfeita de seu saber, ao
passo que o que ela ainda não sabe delimita-se por suas possibilidades de saber
que se vão mostrando à medida que se efetivam. O ainda-não-saber além de ser
mais amplo é a fronteira produtiva da sapiência, é o começo dela.
Do mesmo modo, o que ainda não é é muito mais amplo que o que é, pois é a
sua verdade. O que ainda não é mostra-se somente quando é, deixando sempre o
ainda-não-ser intacto em sua inominalidade. Por isso o ainda-não-ser nunca se
revela, pois quando algo se dá já é e não guarda consigo aspecto algum do que
não é. O ainda-não-ser só se mostra desse modo no ser, pois só o ser é
possível. Língua nenhuma pode dizer o que não é, mas isso não é uma falha, bem
ao contrário, é apenas a concordância com o ser, de tal ordem que mesmo quando
se erra tentando dizer o que não é, diz-se o que é.
A morte remete sempre à vida. O erro de Hélio Pelegrino é não atentar
para essa remissão e, porque não atenta para ela, falha em seu discurso.
Parmênides quando fala dos caminhos de investigação adverte-nos contra o
caminho do não-ser, pois o que não é não pode ser trazido à fala. Quando faz
isso, o filósofo grego ressalta a linguagem como o modo de a investigação se
realizar. A palavra que ele utiliza para dizer isso é o verbo phrazô que
pode significar mostrar, considerar, pensar. Ele é intimamente relacionado por
Parmênides no trecho citado com outro verbo, o gignôskô, que diz
conhecer. Esses dois verbos descrevem as duas impossibilidades do que não é:
isso não pode ser conhecido, nem ser mostrado. Nada obstante, o que é pode
tanto ser conhecido quanto mostrado. O através de que tão bem o conhecimento
como a mostra do que é se dão é a linguagem. Cabe portanto a ela a tarefa de
mostrar e fazer conhecer o que é. Se considerarmos agora junto a essa tarefa da
linguagem o famoso terceiro fragmento do poema de Parmênides em que ele diz que
o mesmo é pensar e ser, devemos atentar à relação contígua entre falar, pensar
e ser, e perceber que ela descortina ainda mais da empresa de quem pretende
dizer o não-ser. Em a linguagem não sendo um meio possível de acesso ao que não
é, a tentativa do uso dela em vista disso revela a desconsideração daquilo de
que ela é meio. E isso de que ela é meio podemos resumir com o mesmo do
ser e pensar. A partir disso, chegamos a que quem empreende uma investigação do
que não é, empreende um dizer nada, um pensar nada, um ser nada. Entretanto,
assim como não é possível falar o não-ser, pois aquele que o tenta sempre fala
o ser; não é possível não pensar nem não ser, pois para ambos seria necessário
a quem tentasse tal disparate não ser. Tal empresa sempre falha e seu
empreendedor retorna sempre mais uma vez a sua única possibilidade efetivada, a
do erro. A não descoberta do erro embota o caminho de investigação e mantém o
erradio no infinito retorno a lugar nenhum. Essa é a sua infinitude: fazer as
vezes de Sísifo. Retorna ele à tentativa de ser nada e é forçado a sempre ser,
restando diante do lugar de advento de suas possibilidades.
Hélio diz que o homem é triste porque morre, quando diz isso, di-lo do
ponto de vista de quem procura empreender o que não é, ou seja, do de quem
empreende a tentativa de não ser. Como isso não é possível, volta ele ainda uma
vez ao ponto zero. Esse constante retorno é o que constitui a tristeza à qual
ele se refere. Estamos agora em hora de lhe dizer, junto a Nelson Rodrigues,
que na verdade tal tristeza não é causada porque o homem morre, mas porque não
morre.
Aquele que está imerso em seu empreendimento em não ser, não tem olhos
para descobrir-se tendo de ser a todo momento. Essa essencial tença de ser
revela-se na necessária escolha de uma possibilidade. O que costumamos chamar
de vida constitui-se de possibilidades efetivadas que são as concreções de
decisões já tomadas. A constante apresentação de novas possibilidades,
entretanto, é o que encerra a dificuldade da vida e, por isso, a sua tristeza.
Nelson Rodrigues quando, corrigindo Hélio Pelegrino, diz que o homem na
verdade é triste porque vive, faz ver que a causa da tristeza desse homem a
partir do qual Pelegrino fala, o homem do erro, é a vida, não a morte. Sua
tristeza reside na impossibilidade sempre renovadamente experimentada de não
ser. Essa vida errante ganha por isso o status de infinitude. A morte, por não
ser, é infinita, não tem determinação, nela circunscreve-se tudo o que não é.
Toda ação nascida do erro do caminho do não-ser perde-se na infinitude do que
não é. Semelhante vida pode ser definida como infinita porque não experimenta a
si mesma em sua construção, conseqüentemente não se experimenta em sua
singularidade. Tal infinitude é a de, por não se ter construído, não se
singularizar no tempo. O erro desviante impede a singularização da vida.
Continuando a fazer o jogo das
contraposições, poderíamos dizer que se por um lado o homem é triste porque
vive, por outro ele é feliz porque morre. Está claro que agora já temos outra
compreensão de morte, portanto não cometemos o erro de dissociá-la da vida.
Ora, se a morte é o lugar desde o qual a vida apresenta as possibilidades para
a construção de uma singularidade, ela é o local desde o qual o homem se faz. A
construção de uma singularidade dá-se desde a experiência de finitude. A cada
possibilidade de efetivação da vida, o homem atento a essa efetivação e à vida
experimenta o singular dessa efetivação e, portanto, o singular de si. Desta
maneira, experimenta ele essa sua possibilidade como única e como a que o
constitui no momento de sua experiência. A vida vai se formando a partir dessas
singularizações, mas ela só chega a se formar de modo completo quando sua
última possibilidade se apresenta, ou seja, quando a morte se esvazia. É
preciso que a morte se torne vazia para que a vida se mostre cheia.
Fizemos uso mais de uma vez do
termo ainda-não-ser, em vez de simplesmente não-ser. O artifício serve-nos para
ressaltar o não-ser como lugar de advento do que é. Tudo que se mostra possível
a partir de sua própria realização, enquanto assim não se mostra, ainda não é.
Depois de ter-se tal ou qual possibilidade plenamente mostrado, esvazia-se aquele
seu ainda não é para que ela seja. A morte dessa forma seria a ainda-não-vida,
ou se quisermos ser mais exatos, a ainda-não-plena-vida. Apenas quando sua
última possibilidade se esvazia, aparece ela inteira. Testemunho disso temos em
Guimarães Rosa que em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras,
falando do antecessor de sua cadeira, João Neves Fontoura, disse: “De repente
morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas.”
Exemplo
dessa completude e, portanto, singularidade no esvaziamento da morte, temo-lo
ainda em Cristo.
De acordo com Mateus e Marcos, as últimas palavras de Jesus Cristo são:
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
Já
consoante João, elas são: “Tudo está consumado!”
O que há
de diverso nesses dois relatos e como entendê-los? Com relação ao primeiro,
revela-se o momento da morte como o em que se experimenta de modo mais radical
a singularidade. Sua última possibilidade revela-o homem e enquanto tal ele é
só. O relato de João completa o primeiro, pois quando Jesus se descobre homem e
só, completa ele o caminho de sua vida. Somente com a descoberta singular desse
momento, sua vida ganha sentido. Tudo está consumado, a morte se esvaziou
apresentando a vida em seu todo. Essa apresentação descobre o Cristo homem e
como tal pode ele falar aos homens com direito, pois fala desde a mesma
necessidade de obediência ao ser, comum a todos.
Parmênides. In:
Pesadores Originários. Trad.: Sérgio Wrublewski. Ed.: Vozes. 1993.
Hegel. Wissenschaft der Logik. Ed.:
Felix Meiner. 1986 Pg.: 39: „Der
Anfang ist nicht das reine Nichts, sondern ein Nichts, von dem Etwas ausgehen
soll”
Rosa, João Guimarães. In: Em memória de Guimarães
Rosa. Ed.: José Olímpio. 1968.
João. ibidem. Trad.: Pe. Manuel Jimenez. Cap.
29. ver. 30.