quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O  Fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Vi uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros, in Ensaios Fotográficos




               
                Uma fotografia registra imagem. No entanto, a força da fotografia não reside na imagem registrada, mas no que não se registra na imagem. Um exemplo: quando vemos um pôr do sol lindo, queremos registrar o lindo mais que a mera imagem do pôr do sol; assim como queremos registrar o nosso entusiasmo diante dele. No entanto, nem o lindo nem o entusiasmo são registráveis. Assim a imagem é a ponte que nos leva àquele momento, o laço que nos prende ao que sentimos ao vermos o pôr do sol antes de fazermos a imagem fotográfica. Este exemplo diz respeito à experiência particular dificilmente transmissível, diz respeito às memórias de cada um. Nossas fotos vontade de registro de momentos intensos vividos por nós não são universais. Isso significa que elas não têm o poder de comover os que não participaram daqueles momentos (embora esta seja uma possibilidade mesmo assim). Isso porque é preciso bem pouco para que nos lembremos de algum momento feliz ou triste e nos emocionemos com uma foto que o registra, pois temos as lembranças que imediatamente se vinculam à foto. Para aqueles que não têm essas lembranças, torna-se muito difícil a comoção. Por conta disso, essas fotos pessoais não precisam ser muito elaboradas, não precisam de luz especial, não precisam de trato específico. Elas estão fortemente vinculadas ao momento e à emoção por intermédio da lembrança. Levando isso em conta, se não temos esse momento e essa emoção, essas fotos pessoais nos dizem pouco. Há, porém, fotos que nos dizem muito e que não estão vinculadas a nenhum momento nem lembrança pessoais. Em que reside a força comovedora dessas fotos? Certamente não na mera imagem, pois, como dissemos acima, a imagem pura e simples não tem força, sim o que a imagem traz consigo. Mas o que pode a imagem trazer que não esteja vinculado à lembrança? A imagem pode trazer “o perfume” do Jasmim, “a existência” da lesma. E quanto mais conseguir mostrar por intermédio da imagem o que não está na imagem, mais forte ela será. O trabalho do fotógrafo é justamente este: mostrar com a imagem o que não está na imagem de modo a que todos possam ver, não apenas ele que sentiu a presença desse silêncio quando fotografou.
                Cabe-nos perguntar, porém, qual a qualidade disso que pode ser mostrado sem estar na imagem? É preciso que seja algo compartilhável, ou seja, não pode se tratar de algo de todo particular, mas tem de ser algo universal. Só assim todos ganham a possibilidade de ver o que está para se mostrar por intermédio da imagem. Para chegarmos ao que é universal no ser humano, é preciso retirar-lhe tudo que é particular, todas as suas peculiaridades. Ao fazermos isso, chegamos a um conjunto de coisas, como as emoções, que participam da existência de todos os seres humanos. Consequentemente podemos chamar tudo isso que participa de todas as existências humanas de o essencial no ser humano. O que lhe é essencial é universal, pois une o que é o humano em igualdade para além de todas as suas diferenças. Percebendo tal fenômeno, podemos dizer, então, que o que se mostra numa fotografia forte ou artística para além da lembrança e por meio da imagem é a essência do que participa da existência humana. E quanto melhor a fotografia mostrar isso, mais forte ela será e mais tocará o espectador, aproximando-o, assim, de todos os seres humanos de modo silencioso e invisível.


Alexander de Carvalho

domingo, 27 de novembro de 2016

Tragédia como metáfora

O conceito de tragédia como o encontramos na introdução do livro A morte da tragédia, de George Steiner, abre a possibilidade de uma compreensão profunda do que venha a ser arte. No texto lemos: “os poetas trágicos gregos afirmam que as forças que modelam ou destroem nossas vidas estão fora do controle da razão e da justiça”. Dizer isso é afirmar que as forças que conduzem nossa existência estão fora de qualquer possível controle. É preciso, entretanto, atentar para o que significa controle. Dentre seus vários possíveis significados, gostaria de tomar um e trabalhar com ele aqui: o nomear. Nomear algo e julgar conhecê-lo pelo nome é uma forma de controle. Quando nomeio cadeira a um objeto construído por mim e sobre o qual me sento para descansar ou jantar, determino seu sentido, seu significado e, com isso, controlo tal objeto. Não me preocupo mais com qualquer outra possibilidade de aparecer, de acontecer daquele objeto, pois, sabendo seu nome, sei como sempre vai aparecer para mim e para qualquer outra pessoa: como algo sobre o que se senta. Podemos dizer a mesma coisa sobre outros objetos, como a mesa, a prateleira, a panela, a lata etc. Basta sabermos seus nomes e suas definições para termos controle sobre eles. Isso se aplica à imensa maioria dos casos em nosso cotidiano. Sabemos o nome das coisas, usamos as coisas e, assim, as coisas não nos surpreendem. Por conta disso, perdemos de vista o caótico, o inusitado, o admirável que está contido em estado de potência em cada objeto. Se nós nos esquecemos disso, as crianças bem pequenas ainda não se esqueceram. Quem já pôde observar um bebê descobrindo o mundo, pegando coisas a sua volta ou apenas olhando para elas, sabe com que espanto e admiração ele lida com tudo que vê e toca. Isso porque aquilo que ele toca ou vê surge para ele ainda em seu anonimato, na força de sua primeira aparição, ou seja, sem controle. Ele fica encantado com o simples fato de aquilo que ele vê ou toca surgir na frente dele, com o simples fato de aquilo existir. A adultidade nos tira isso. As coisas perdem seu encanto para nós. Isso, contudo, não significa que elas não possam ainda nos encantar. Mas o que poderia destravar essa habilidade esquecida de encantamento, o que poderia quebrar a casca do nome para, de dentro dele, surgir como surpresa outra possibilidade do objeto, outra possibilidade para a qual não tenhamos nome ainda? Para pensarmos sobre isso, vejamos o texto da música Metáfora de Gilberto Gil

Metáfora

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
               
                Parece que o poeta traz algo para o objeto, no caso, a lata, que retira dele seu nome, sua definição, sua serventia e destranca a arca de possibilidades, podendo fazer caber na lata o incontível. Mas o que é isso que ele traz? Ele traz a infância da coisa, ele traz sua tragédia, sua abertura para o encantamento. Ele desfaz a adultidade do olhar e nos permite olhar mais uma vez como criança. Aí, então, o objeto se mostra mais rico do que poderíamos julgar, mais bonito do que poderíamos ver, mais pleno de vida do que poderíamos sentir. No que eu expresso assim o desmantelamento da casca das coisas, parece que isso é desejável e sempre é algo bom. No entanto, isso é desesperador e é justamente algo de que sempre fugimos. Nós, em nossa vida cotidiana, em nossa busca por tranquilidade, fugimos constantemente da poesia e de sua tragicidade. Por quê? Ora, para nos acostumarmos com o mundo a nossa volta, precisamos nomeá-lo, conhecê-lo. Ao o conhecermos e nos acostumarmos com ele, ficamos tranquilos, sentimo-nos, finalmente, em casa. Quando vejo um ônibus, fico contente em saber o que é um ônibus, para que ele serve e como devo me portar com ele, queira eu subir nele ou não; do mesmo modo, quando me encontro com o João, fico contente em saber quem é o João, como ele é, qual seu signo. Esse contentamento é primordial, ele é anterior a qualquer bem-querer ou malquerer. É fundamental que eu saiba por que não gosto de andar de ônibus, por que não gosto do João, por exemplo. Não saber por que não gosto seja de andar de ônibus seja do João, dependendo da intensidade, pode ser perturbador, grandemente inquietante. É sempre um conforto saber ou, pelo menos, julgar saber por que não gosto de algo ou alguém. A tragédia quebra todo esse saber e nos arrasta para a infância, onde, embora fiquemos encantados com tudo, não sabemos nada, não julgamos saber nada e, portanto, somos completamente indefesos. Para a infância não há nome, não há certeza, não há deus, não há salvação; para a criança não há nada disso também, mas ela não precisa, pois não há ainda vontade de controle, não há medo, não há precisão de nada sobrenatural, não há condenação. Nós, porém, não podemos voltar a ser criança, podemos apenas, por meio da tragédia, por meio da arte, voltar à infância do mundo, mas ao fazermos isso, ainda trazemos conosco os medos e pavores que a vida adulta nos incute. Justamente por essa razão é desesperador olhar para as coisas como se elas tivessem surgido no exato momento em que olhamos para elas. Desse modo, sabiamente reservamos esse olhar límpido de criança para alguns objetos específicos: as obras de arte. Na arte, a tragédia reina e traz à tona da realidade possibilidades esquecidas dos objetos em geral; mais que isso, ela permite um renascimento da coisa, como se só agora tal coisa realmente existisse.


Alexander de Carvalho

domingo, 5 de agosto de 2012

Infinitude e Morte



Em uma entrevista, Nelson Rodrigues relata um dialogo tido entre ele e Hélio Pelegrino em que este último dirige-se a ele e diz:

- “Nelson, o homem é triste porque morre.”

A isso Nelson Rodrigues responde:

- “Não, Hélio, o homem é triste porque vive.” 

          Há nas palavras de Hélio Pelegrino a pressuposição de que o homem seja triste. Se quisermos apreender melhor sua fala, deveríamos investigar o que é tristeza, o que é  o homem, o que é causa, o que é a morte, o que é a vida. Entretanto não dispomos de tempo nem de espaço para essas investigações. Desse modo, propomo-nos a considerar duas das questões levantadas: o que é a morte e o que é a vida. Não as escolhemos por termo-las como fáceis ante as outras. Bem distante disso. Elas foram escolhidas porque trazem as outras consigo naturalmente, e, de todo modo, são as que aparecem com mais freqüência na corrente diária.

O que é então a morte? Não podemos definir essa palavra, senão em relação a sua aparente face contrária, à vida. Se é assim, só podemos definir a morte pelo que ela não é. E chegamos de fato a uma definição simples e rápida se dissermos que a morte é a deixa da vida. Não cremos que estejamos errados em dizer isso, mas não nos podemos deixar emaranhar na simplicidade da definição.

Um tanto antes dissemos que a morte só se define pelo que ela não é, ou seja, pela vida. Por conta disso, a fim de apreendermos a morte, precisamos saber não só o que é isso, não ser algo, como também o que é a vida. Quanto à primeira questão, a melhor maneira de investigá-la é tomar aquilo que não é em absoluto, o não-ser. Quanto à segunda, ela precisa esperar ainda um pouco por sua ocasião. Agora nos cabe mostrar a dupla necessidade da investigação do conceito não-ser com respeito à morte. Primeiro é necessário investigá-lo, porque a morte só se define pelo que ela não é; em decorrência disso, temos a segunda necessidade, a morte só se deixa definir pelo que ela não é, porque ela mesma não é coisa alguma.

Como pode então Hélio Pelegrino falar da morte se ela não é? Na verdade, ele comete um erro quando fala sobre ela, pois desconsidera sua não-essência. Esse erro não é novo, contra ele já se levanta a deusa no poema de Parmênides quando adverte seus súditos dizendo: “este caminho (do não-ser) eu te digo em verdade ser totalmente insondável e inviável; pois não haveria de conhecer o não-ente (pois este não pode ser realizado) nem haverias de trazê-lo à fala”[1]. Mostra-se a nós nesse momento a urgência de tratar desse erro. Como pode alguém intentar dizer o que não é? Por que a necessidade de advertência? Lidamos quotidianamente com uma série de questões, mas de modo algum chega a nós qualquer problema a cerca do que simplesmente não é. Levamos o quotidiano em conta, porque tanto a deusa quanto nós em nosso texto, dirigimo-nos a homens, nós aqui com muito mais direito que a deusa, pois somos do mesmo modo homens. Dirigimo-nos a homens, assim como nós, de uma comunidade, isto é, na maior parte do tempo, comuns. Enquanto tais, estranhamos que alguém nos advirta do perigo de investigarmos o que não é. De todo modo, em respeito ao poema de Parmênides, devemos dizer que a advertência parte de quem conhece o perigo, para quem não o conhece. Em verdade, somente não sabendo do erro de investigar o que não é é possível empreender sua investigação.

Como dissemos, é pouco provável encontrarmo-nos a nós mesmos ou a outros investigando o que apenas não é. Não vemos ninguém perguntando o que é o não; ou o que é o nada; ou o que é o fim; ou o que é o não-ser. Entre isso tudo, vemos vez e outra quem se disponha a dizer a cerca da morte. Eis porque a peculiaridade dessa palavra. Porque então é comum o discurso sobre esse que não é, a morte? Certamente porque se comete um erro, o de considerá-la como se fosse. A deusa no poema revela que o não-ser não pode ser trazido à fala, ele é, portanto, indizível. Se é assim, o que dizem os que discursam sobre a morte? Com certeza não a ela, já que ela não é. O que então?

Só sendo possível falar do que é, mesmo Parmênides em seu poema ao falar a cerca do não-ser, fala referindo-o ao ser. Destarte, fala ele sempre o ser, ainda que suas palavras procurem alguma referência ao não-ser. Seguindo-lhe o exemplo, somente conseguiremos tirar algum proveito do dizer a cerca do que não é, referindo-o ao que é. Tal proveito, contudo, é sempre tirado do que é, pois somente ele é ferido. Temos de referir o nada ao algo; o não ao sim; o fim ao começo; a morte à vida. Aquele que discursa sobre a morte, diz sempre a vida. Entretanto, com não saber da inessência da morte, incorre em erro duplo: por um lado não consegue dizer a morte, já que ela não é; por outro não diz a vida com o devido respeito, já que não se sabe dizendo-a. Paradoxalmente, seu discurso, ele sim, ganha uma aproximação da morte, em dizendo nada e, em seqüência, em não trazendo nada à tona da palavra.

Que proveito, entretanto, é possível tirar do que é indo a isso por esse desvio, pelo que não é? Com relação a isso, citamos Clarice Lispector que numa de sua crônicas reunidas no livro A Descoberta do Mundo escreve: “(...) eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor o que não sei e – por ser um campo virgem – está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor: é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade”.[2]

“Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade”. Esta última frase perdura ainda e fere a nossa indústria. Como pode justamente o não saber ser a verdade, precisamente essa que pretende fundamentar todo saber?

Assim como para entendermos Hélio Pelegrino, apelamos a Parmênides; para entendermos Clarice Lispector, precisamos apelar a Hegel. Em seu livro “Ciência da Lógica”, escreve ele: “O começo não é o puro nada, mas um nada do qual algo deve advir.”[3]. A ajuda que essa citação nos traz é obtida se atentarmos para o verbo advir aí empregado. Tudo aquilo que se determina a partir do começo, determina-se do nada, não do ser, pois o ser é puro e permanece puro enquanto puro começo. O nada, entretanto, que no princípio se confunde com o ser, ele sim desdobra-se no que ele ainda não é. Considerando esse advento, estamos livres para dizer que o proveito de um acesso sinuoso ao saber se dá do ainda não saber, do ainda possível do saber. Isso que Clarice não sabe descreve sua possibilidade de saber e enquanto tal é a sua verdade, pois daí advirão suas possibilidades de sapiência. O que ela sabe delimita-se pela efetivação perfeita de seu saber, ao passo que o que ela ainda não sabe delimita-se por suas possibilidades de saber que se vão mostrando à medida que se efetivam. O ainda-não-saber além de ser mais amplo é a fronteira produtiva da sapiência, é o começo dela.

Do mesmo modo, o que ainda não é é muito mais amplo que o que é, pois é a sua verdade. O que ainda não é mostra-se somente quando é, deixando sempre o ainda-não-ser intacto em sua inominalidade. Por isso o ainda-não-ser nunca se revela, pois quando algo se dá já é e não guarda consigo aspecto algum do que não é. O ainda-não-ser só se mostra desse modo no ser, pois só o ser é possível. Língua nenhuma pode dizer o que não é, mas isso não é uma falha, bem ao contrário, é apenas a concordância com o ser, de tal ordem que mesmo quando se erra tentando dizer o que não é, diz-se o que é.

A morte remete sempre à vida. O erro de Hélio Pelegrino é não atentar para essa remissão e, porque não atenta para ela, falha em seu discurso.

Parmênides quando fala dos caminhos de investigação adverte-nos contra o caminho do não-ser, pois o que não é não pode ser trazido à fala. Quando faz isso, o filósofo grego ressalta a linguagem como o modo de a investigação se realizar. A palavra que ele utiliza para dizer isso é o verbo phrazô que pode significar mostrar, considerar, pensar. Ele é intimamente relacionado por Parmênides no trecho citado com outro verbo, o gignôskô, que diz conhecer. Esses dois verbos descrevem as duas impossibilidades do que não é: isso não pode ser conhecido, nem ser mostrado. Nada obstante, o que é pode tanto ser conhecido quanto mostrado. O através de que tão bem o conhecimento como a mostra do que é se dão é a linguagem. Cabe portanto a ela a tarefa de mostrar e fazer conhecer o que é. Se considerarmos agora junto a essa tarefa da linguagem o famoso terceiro fragmento do poema de Parmênides em que ele diz que o mesmo é pensar e ser, devemos atentar à relação contígua entre falar, pensar e ser, e perceber que ela descortina ainda mais da empresa de quem pretende dizer o não-ser. Em a linguagem não sendo um meio possível de acesso ao que não é, a tentativa do uso dela em vista disso revela a desconsideração daquilo de que ela é meio. E isso de que ela é meio podemos resumir com o mesmo do ser e pensar. A partir disso, chegamos a que quem empreende uma investigação do que não é, empreende um dizer nada, um pensar nada, um ser nada. Entretanto, assim como não é possível falar o não-ser, pois aquele que o tenta sempre fala o ser; não é possível não pensar nem não ser, pois para ambos seria necessário a quem tentasse tal disparate não ser. Tal empresa sempre falha e seu empreendedor retorna sempre mais uma vez a sua única possibilidade efetivada, a do erro. A não descoberta do erro embota o caminho de investigação e mantém o erradio no infinito retorno a lugar nenhum. Essa é a sua infinitude: fazer as vezes de Sísifo. Retorna ele à tentativa de ser nada e é forçado a sempre ser, restando diante do lugar de advento de suas possibilidades. 

Hélio diz que o homem é triste porque morre, quando diz isso, di-lo do ponto de vista de quem procura empreender o que não é, ou seja, do de quem empreende a tentativa de não ser. Como isso não é possível, volta ele ainda uma vez ao ponto zero. Esse constante retorno é o que constitui a tristeza à qual ele se refere. Estamos agora em hora de lhe dizer, junto a Nelson Rodrigues, que na verdade tal tristeza não é causada porque o homem morre, mas porque não morre.

Aquele que está imerso em seu empreendimento em não ser, não tem olhos para descobrir-se tendo de ser a todo momento. Essa essencial tença de ser revela-se na necessária escolha de uma possibilidade. O que costumamos chamar de vida constitui-se de possibilidades efetivadas que são as concreções de decisões já tomadas. A constante apresentação de novas possibilidades, entretanto, é o que encerra a dificuldade da vida e, por isso, a sua tristeza.

Nelson Rodrigues quando, corrigindo Hélio Pelegrino, diz que o homem na verdade é triste porque vive, faz ver que a causa da tristeza desse homem a partir do qual Pelegrino fala, o homem do erro, é a vida, não a morte. Sua tristeza reside na impossibilidade sempre renovadamente experimentada de não ser. Essa vida errante ganha por isso o status de infinitude. A morte, por não ser, é infinita, não tem determinação, nela circunscreve-se tudo o que não é. Toda ação nascida do erro do caminho do não-ser perde-se na infinitude do que não é. Semelhante vida pode ser definida como infinita porque não experimenta a si mesma em sua construção, conseqüentemente não se experimenta em sua singularidade. Tal infinitude é a de, por não se ter construído, não se singularizar no tempo. O erro desviante impede a singularização da vida.

Continuando a fazer o jogo das contraposições, poderíamos dizer que se por um lado o homem é triste porque vive, por outro ele é feliz porque morre. Está claro que agora já temos outra compreensão de morte, portanto não cometemos o erro de dissociá-la da vida. Ora, se a morte é o lugar desde o qual a vida apresenta as possibilidades para a construção de uma singularidade, ela é o local desde o qual o homem se faz. A construção de uma singularidade dá-se desde a experiência de finitude. A cada possibilidade de efetivação da vida, o homem atento a essa efetivação e à vida experimenta o singular dessa efetivação e, portanto, o singular de si. Desta maneira, experimenta ele essa sua possibilidade como única e como a que o constitui no momento de sua experiência. A vida vai se formando a partir dessas singularizações, mas ela só chega a se formar de modo completo quando sua última possibilidade se apresenta, ou seja, quando a morte se esvazia. É preciso que a morte se torne vazia para que a vida se mostre cheia.

Fizemos uso mais de uma vez do termo ainda-não-ser, em vez de simplesmente não-ser. O artifício serve-nos para ressaltar o não-ser como lugar de advento do que é. Tudo que se mostra possível a partir de sua própria realização, enquanto assim não se mostra, ainda não é. Depois de ter-se tal ou qual possibilidade plenamente mostrado, esvazia-se aquele seu ainda não é para que ela seja. A morte dessa forma seria a ainda-não-vida, ou se quisermos ser mais exatos, a ainda-não-plena-vida. Apenas quando sua última possibilidade se esvazia, aparece ela inteira. Testemunho disso temos em Guimarães Rosa que em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, falando do antecessor de sua cadeira, João Neves Fontoura, disse: “De repente morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas.”[4] Exemplo dessa completude e, portanto, singularidade no esvaziamento da morte, temo-lo ainda em Cristo.

De acordo com Mateus e Marcos, as últimas palavras de Jesus Cristo são: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”[5] Já consoante João, elas são: “Tudo está consumado!”[6] O que há de diverso nesses dois relatos e como entendê-los? Com relação ao primeiro, revela-se o momento da morte como o em que se experimenta de modo mais radical a singularidade. Sua última possibilidade revela-o homem e enquanto tal ele é só. O relato de João completa o primeiro, pois quando Jesus se descobre homem e só, completa ele o caminho de sua vida. Somente com a descoberta singular desse momento, sua vida ganha sentido. Tudo está consumado, a morte se esvaziou apresentando a vida em seu todo. Essa apresentação descobre o Cristo homem e como tal pode ele falar aos homens com direito, pois fala desde a mesma necessidade de obediência ao ser, comum a todos.



[1]  Parmênides. In: Pesadores Originários. Trad.: Sérgio Wrublewski. Ed.: Vozes. 1993.

[2]  Lispector, Clarice. A Descoberta do Mundo. Ed.: Nova Fronteira. 1984.
[3]  Hegel. Wissenschaft der Logik. Ed.: Felix Meiner. 1986 Pg.: 39:  „Der Anfang ist nicht das reine Nichts, sondern ein Nichts, von dem Etwas ausgehen soll”

[4] Rosa, João Guimarães. In: Em memória de Guimarães Rosa. Ed.: José Olímpio. 1968.

[5] Mateus. In: A Bíblia. Ed.: Abril LTDA.. Trad.: Pe. Marcos Carneiro de Almeida. 1967. cap. 27. ver. 46
[6] João. ibidem. Trad.: Pe. Manuel Jimenez. Cap. 29. ver. 30.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Migalhas do capitalismo


E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.



"Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção."

Vinícius de Morais, Operário em Construção (trecho)


    O texto citado diz respeito a uma possível resposta do trabalhador aos avanços do capitalismo. Essa resposta, sabemos, não foi dada. Em seu lugar, aceitamos a oferta do capitalista (aqui comparado à figura do Diabo). Podemos ver isso com as "conquistas" dos trabalhadores no decorrer do século XX. Mais do que significarem uma conquista do trabalhador, significaram uma conquista do capitalismo. Ora, somente por meio da criação de dispositivos que permitissem aos trabalhadores continuarem seu trabalho, o capitalismo poderia equacionar suas contradições internas. Nesse sentido, tudo que conhecemos como melhorias e avanços nas relações trabalhistas são conquistas e avanços do capitalismo. As leis trabalhistas, a redução da jornada de trabalho, a criação de sindicatos, etc. Quando no poema o capitalista oferece ao operário várias melhorias para as condições de seu trabalho, o operário, que aí já é operário construído, não mais em construção, ele diz não. E diz não justamente por a oferta ser absurda, já que o que lhe era oferecido eram apenas migalhas diante de tudo o que ele via e isso mesmo já era dele. No nosso caso, nosso operário histórico ainda está em construção. Ele não sabe que as coisas são dele. Por isso aceitou as migalhas que o capitalismo lhe ofereceu. 
    O capitalismo é uma estrutura que funciona à revelia de vontades individuais. Quando menciono o capitalista, principalmente quando comparado ao Diabo, não pretendo fazer nenhum julgamento moral. O empresário particular não é "o capitalista". O capitalista não é uma pessoa, é um papel que pode ser desempenhado por qualquer um. Esse papel é importante para a peça e para o teatro como um todo, mas pode não guardar nenhuma relação com o individuo que o desempenha. Desse modo, também os trabalhadores são papeis representados por indivíduos que, para atuarem no capitalismo, precisam desempenhar justamente esse papel. O capitalista não se contrapõe ao trabalhador. Ambos são personagens necessárias para a estrutura capitalismo acontecer. Há um equilíbrio que vai sendo criado na relação entre o trabalhador e o capitalista. Esse equilíbrio responde a um bem maior: a manutenção do capitalismo. As exigências de melhores condições de vida e de trabalho não visam abolir ou revolucionar o capitalismo, na verdade partem precisamente de sua aceitação. Tais exigências respondem, então, às necessidades do próprio capitalismo, para a sua perpetuação. As contradições gritantes apontadas por Marx foram minimizadas (ou maquiladas) por esses “avanços trabalhistas”. Esses avanços e vitórias, aliás, são do próprio sistema capitalista que soube abarcar o que lhe atacava e neutralizar sua força. Nesse sentido, todas as formas de luta para minimizar explorações e participar das conquistas do capitalismo são veículos de equilíbrio que atendem às necessidades de remodelação para perpetuação. Quando o capitalista cede, seja ao operário, seja ao meio ambiente, ele cede atendendo a uma requisição do próprio capitalismo para que ele se perpetue. O não cuidado com o operário poderia levá-lo a um estado de descontentamento extremo que o faria recusar-se a ser explorado. Nenhum outro modo de produção mostrou tanta flexibilidade quanto o capitalismo. Por isso ruíram e, quase sempre, de forma violenta pela tomada do poder por quem já tinha força suficiente para deixar de ser explorado e passar a explorar. Do mesmo modo, o não cuidado com o meio ambiente pode impossibilitar o capitalismo, pela falta de matéria prima. O cuidado com o operário e com o meio ambiente atende, assim, a duas requisições de manutenção do sistema capitalista: por um lado permitem a manutenção do status quo, por outro agregam valor ao produto de comercialização: ele passa a ter o selo de responsabilidade social e ambiental, tornando-o mais lucrativo.

Por que só é possível filosofar em Grego e Alemão?



A referida frase foi escrita por Heidegger em sua tese de doutoramento. Ela data, portanto, de quando ele ainda não havia conquistado seu lugar no pensamento do século XX. Esse fato talvez seja suficiente para não darmos tanta importância a essa afirmação e deixarmo-la presa ao rol dos preconceitos dos filósofos. Nada obstante, esse doutorando se tornaria no pensador mais importante do século XX e, por força desse tornamento, tudo o que ele dissesse ganharia em relevância. Desse modo, não podemos fechar os olhos a essa afirmação; devemos investigá-la conferindo-lhe o respeito consoante a importância de quem a disse.
Nossa investigação é bastante limitada. Não analisaremos minuciosamente nem o idioma alemão nem o grego, sequer tentaremos dizer o que seja filosofar. Procuraremos somente descobrir de dentro da frase o encoberto nela. Na seqüência desse sentido, vejamos agora o que nos pode dizer essa frase. Primeiro, ela nos diz que filosofar é possível, depois que essa possibilidade só se concretiza em grego e alemão. Quanto à possibilidade do filosofar, não nos é difícil encontrar-lhe corroboração, haja vista os filósofos. Contudo, quanto a essa possibilidade só se concretizar em grego e alemão, não podemos senão trocar o advérbio pelo também e talqualmente encontrar-lhe corroboração. No entanto, a afirmação, infelizmente, não diz também ser possível filosofar em grego e alemão, mas ser possível filosofar em grego e alemão. Esse fato dificulta nossa tarefa, não no-la impede.
Como já assinalamos, não nos é difícil corroborar a possibilidade do filosofar. Basta-nos concordar com ser a empresa do filósofo o filosofar, se assim o fizermos, saberemos que isso tem-se feito possível há mais de dois mil anos.  A real dificuldade está na segunda parte da afirmação. Como corroborar só ser possível filosofar em grego e alemão? Talvez não o possamos, isso ou por não sermos capazes ou pela existência de vários filósofos em outras línguas ou ainda por amor a nosso idioma. Em consideração a esses possíveis impedimentos, não tentaremos validar essa segunda parte da afirmação, mas somente compreendê-la. Em vista disso, fazemos a seguinte observação: se, conforme Heidegger, a possibilidade do filosofar só se dá por meio do grego e do alemão, isso nos leva a crer que ele considera reunirem, esses dois idiomas, características as mais favoráveis para o filosofar. Por conta do dito, deveríamos agora investigar essas pretensas características, ainda assim não o faremos. Se o fizéssemos, teríamos de abordar tanto um idioma quanto o outro e isso tomar-nos-ia demasiado tempo e desmedida energia. Mesmo assim, não podemos nos esquivar de tecer algumas considerações tanto de um quanto de outro. Com esse fim, em vez de nós mesmos empreendermos uma análise mais cuidadosa, tomaremos o testemunho de quem, eles sim, tenham empreendido um intrometimento, se não em ambos, num ou noutro deles. Com relação ao alemão, Miguel de Unamuno no Volume VI de suas obras completas, à página 768, diz: “É indubitável que a língua alemã possui grandes vantagens para a investigação filosófica. Um prefixo, de significação necessariamente vaga, uma raiz, abstrata também, e um sufixo, igualmente abstrato, (...) isso tudo permite passar de uns conceitos a outros com grande facilidade e sutileza e refinar concepções filosóficas.”[1]
Considerando Unamuno, podemos dizer que, de fato, o alemão possui características favoráveis ao filosofar. Não obstante, é-nos lícito ainda perguntar: como ele veio a possuir essas características?  Uma possibilidade de resposta a essa pergunta encontra-se na consideração acerca do desenvolvimento do idioma grego feita por Bruno Snell em seu livro “A Estrutura da Linguagem”. À página 194 desse livro, ele escreve: “Demócrito, o fundador da doutrina atômica, foi o primeiro a procurar efetuar uma interpretação natural-científica ampla do mundo. A fim de conseguir isso com a língua que lhe estava disponível, precisou eliminar algumas formas lingüísticas e ressaltar outras. Ele desenvolveu seu sistema filosófico através do uso exclusivo de todas as formas lingüísticas que fossem relevantes para a cunhagem do sentido fenomênico da “representação”.[2]
Demócrito vê o mundo de um modo antes não visto, ele, a partir dessa nova vista, procura um meio através do qual fazê-la visível aos outros. O meio que ele encontra é a língua grega, todavia, ele não a poderia tomar tal como ela se apresentava no uso ordinário, isso porque a extraordinariedade de sua nova vista requeria um uso igualmente extraordinário do meio através do qual ela viesse a se mostrar. Destarte, Demócrito procede à transformação do idioma grego. Devemos entender essa transformação não como substituição do idioma de então por outro mais rico, mas como o levar esse mesmo idioma para além da formação de então. Essa trans-formação do idioma, podemos também dizer com descobrimento. Conforme ele vai fazendo uso filosófico de seu idioma, descobre-lhe várias possibilidades, e passa a destacar e fazer uso das que interessam à mostra dessa sua nova vista. Esse processo de descobrimento do idioma grego é empreendido igualmente por outros filósofos, assim nos conta Snell. Isso tudo conduz-nos a uma ponderação: se cada pensador grego faz uso de seu idioma para mostrar o que ele vê de novo, o idioma mesmo acompanha esse movimento ganhando novas possibilidades das quais cada um deles lança mão segundo o requerimento de sua vista. Sendo assim, quando Platão começa a filosofar, encontra um idioma amplamente desenvolvido, apresentando-lhe possibilidades ganhas no concurso de uma história de transformação concomitante do idioma e do pensamento gregos. Em respeito a essa concomitância, e ao seu estudo empreendido no desenvolvimento da linguagem, Bruno Snell diz à página 12 do mesmo livro: “Por, entretanto, o desenvolvimento do falar estar unido ao desdobramento do pensar, tal estudo da linguagem conduz à autoconsciência do homem e à descoberta do espírito; (...) e se nós quisermos apreender as condições de possibilidade do pensar na linguagem, talvez haja algo que aprender do que é afinal nosso pensamento e qual o sistema sobre o qual ele se funda, nesse caminho que vai do falar primitivo até o complicado e diferenciado.[3]
Por meio das considerações anteriores, ficamos sabendo que o uso da linguagem determina as suas possibilidades de uso. Isso é-nos dito ainda por outro profundo conhecedor do idioma heleno, o professor Henrique Murachco, à página 12 de seu livro “Língua Grega Vol. I”: “ (...) Platão, Aristóteles e outros (...) transformaram-na ( a língua grega) num instrumento perfeito, para exprimir com perfeição todos os matizes do pensamento humano.” A língua grega não nasceu perfeita para uso algum, bem distante disso, o uso que o povo grego fez dela foi determinando suas possibilidades de uso. À medida que havia poetas, foram-se desenvolvendo suas possibilidades de uso poético; à medida que filósofos, as de filosófico. Cada qual contribuindo para o desenvolvimento de seu idioma.
Esse mesmo uso possibilitou ao idioma grego uma riqueza estrutural e vocabular que se confunde com a própria riqueza dos pensadores e poetas gregos. E, em verdade, há mister de haver essa confusão, pois pensar e falar, consoante Snell, em nossa concordância, estão unidos, i. e., confundidos.
Essas observações e averiguações com relação ao grego, podemos aplicá-las também ao alemão. Com esse destino, valer-nos-emos de um pensador sui generis nesse assunto de agora: Leibniz. Yvon Belaval, em seus “Estudos leibnizianos”, dedica um capítulo à relação entre Leibniz e a língua alemã. Nesse capítulo, ele diz que não só para Leibniz, senão que também para Fichte, “a superioridade da língua alemã não está em sua origem, e sim no uso ininterrupto que dela tem feito um povo.”[4]  Novamente, vemos ser o uso o determinante da melhor possibilidade de uso, nesse caso, filosófico. Há, porém, um acréscimo na precedente citação. Leibniz considera a língua alemã superior às demais no seu uso filosófico. Antes de focalizarmos essa pretensa superioridade, precisamos ainda caracterizar o gênero desse uso que o povo alemão vem fazendo de sua língua. No mesmo livro à página 28, Yvon Belaval, citando Leibniz, escreve: “ ela ( a língua alemã) é para o real, a despeito de todas as outras, a mais densa e a mais perfeita; é que nenhum outro povo cultivou com mais desvelo, durante muitos séculos, as artes concretas e a mecânica; a tal ponto que mesmo os Turcos, nas minas da Grécia e da Ásia Menor, designam os metais por nomes germânicos.”[5] O que caracteriza o uso do alemão é, então, a “concreção” e a “mecânica”. De modo a sermos mais plásticos, passaremos a dizer que o alemão, acordados por Leibniz, é um idioma concreto e mecânico e que ele o é por força de os alemães virem usando-o concreta e mecanicamente. Nesse caminho, se o idioma alemão é perfeito, ele o é para a mostra de uma vista concreta e mecânica para mundo. Melhor dizendo, assim como o uso que Demócrito faz da língua grega é determinado por sua vista para o mundo; o uso concreto e mecânico que o alemão faz de seu idioma é determinado por uma vista para o mundo concreta e mecânica. A perfeição desse idioma delimita-se por essa vista.
Chegamos aqui a um ponto muito importante, desde o qual podemos completar, para melhor compreender, a afirmação de Heidegger que vimos tematizando. Ela soa agora assim: só é possível filosofar em grego e alemão, mas em alemão só é possível filosofar concreta e mecanicamente. A seguirmos essa frase, deixamos todas as outras possibilidades do filosofar ao idioma grego. Com procedermos nessa via, o que dizermos dos outros tantos filósofos em outras quantas línguas? Eles todos são somente repetições da filosofia grega. Mesmo os alemães começaram a filosofar imitando os gregos. Nisso não pode haver surpresa alguma, pois se os gregos descobriram a filosofia e a desenvolveram à grandeza não só de um Platão, mas ainda de um Aristóteles, todos os que se pusessem a seguir-lhes a empresa haveriam de imitá-los, sem, contudo, essa imitação causar constrangimento ou desprestígio algum.
Houve um começo da filosofia na Grécia, por isso não nos incomodamos em imitar os gregos e em dizer da perfeição de seu idioma. Será, porém, que há um começo da filosofia também na Alemanha? E se há, será que nós, ao filosofarmos, imitamos não só os gregos, mas também os alemães? E se é assim, será que, como com respeito aos gregos, nós também não nos constrangemos nem nos sentimos desprestigiados por essa imitação?  
Essas são perguntas difíceis não só por requererem demais de nossa indústria, senão que por melindrarem nosso brio; não, com certeza, nosso brio patriótico, pois não há tradição milenar em idioma português, mas nosso brio, digamo-lo, romântico.
De todo modo, consideraremos a primeira das perguntas, se há um começo da filosofia também na Alemanha. Ainda não podemos saber se há ou se não há tal começo, no entanto, se supusermos haver, já sabemos que só pode ser um começo concreto e mecânico. 
O caráter concreto e mecânico do suposto recomeço da filosofia na Alemanha é questão que tratar noutro espaço e tempo. Aqui e agora podemos somente rememorar que os maiores filósofos alemães são sistemáticos, ou seja, vêem o mundo a partir de um sistema concreto organizado mecanicamente, cada ponto fazendo mover o outro de modo a o resultado desses movimentos ubíquos ser coerente consigo mesmo e com a vista a partir da qual houve precisão de seu surgimento. Há, entrementes, uma exceção: Nietzsche. Ele não se encaixa nessa descrição, isso não por falta de coerência, mas por falta de sistematização.
O que, de fato, importa a nós é saber que Heidegger só pôde dizer o que disse, porque as duas maiores tradições do pensamento são a grega e a alemã. Vimos que o uso determina a possibilidade de uso, desse modo, o constante e pungente uso filosófico nessas duas línguas transformaram-nas em instrumentos perfeitos para o filosofar. Gostaríamos, ainda, de buscar outro testemunho para a importância do uso no desenvolvimento do idioma. Nesse caso, porém, não um que enobreça a língua alemã, pelo contrário, um que mostre ser ela capaz de se transformar no oposto de qualquer nobreza possível. George Steiner escreve em seu livro “Linguagem e Silêncio” à página 137, o seguinte: “O nazismo encontrou na língua exatamente o que precisava para expressar sua selvageria. Hitler ouviu, dentro do idioma pátrio, a histeria latente, a confusão, a qualidade de transe hipnótico. Ele mergulhou certeiro para dentro da vegetação rasteira da linguagem, para dentro daquelas zonas de escuridão e de clamor que estão na infância da fala articulada e que vêm antes que as palavras se tornem suaves e provisórias ao toque da mente. Ele pressentiu no alemão uma outra música além daquela de Goethe, Heine e Mann; uma cadência áspera, metade jargão nebuloso, metade obscenidade.”[6] Outra vez, vemos do que um idioma é capaz, não só o idioma alemão ou o grego, mas qualquer um; isso é o que ainda diz, mas adiante Steiner: “Um Hitler teria encontrado reservatórios de veneno e de analfabetismo moral em qualquer língua.” É, a partir de agora, que essa discussão passa a ser realmente importante para nós, brasileiros. 
Hitler encontraria em qualquer língua veneno e analfabetismo moral, e Hegel, será que ele encontraria o Absoluto em qualquer língua? E Heidegger, será que ele encontraria o Dasein em qualquer língua? Um pouco atrás, concordamos com Snell quando ele escreve estarem o pensar e o falar unidos, de modo que ao estudar um, descobre-se o outro. Termos visto isso faz-nos perceber que se o pensar e o falar andam tão contíguos, a tradição de pensamento tanto grega quanto alemã reflete-se na língua empregada nessa tradição. Conseqüentemente, não só o Absoluto de Hegel, como também o Dasein de Heidegger são palavras nascidas de uma tradição, por seqüência elas precisam dessa tradição para serem Absoluto e Dasein. Com isso, podemos responder nossa pergunta, dizendo que nem Hegel encontraria o Absoluto em qualquer língua, nem Heidegger encontraria o Dasein em qualquer língua. Eles só encontrariam o que a tradição dessas línguas lhes permitisse, pois qualquer transformação somente é permitida pelo haver de uma formação prévia.    
Precisamos perguntar agora: o que a tradição, por exemplo, em língua portuguesa no Brasil, permitiria a Hegel e a Heidegger encontrarem? Já vimos, a linguagem é requisitada pelo que se deve mostrar e o que se deve mostrar é o que se vê, é a vista. Hegel veria algo, e procuraria mostrá-lo fazendo uso da língua disponível, e se ela não apresentasse as condições necessárias para essa mostra, ele a transformaria para a apresentação dessas condições. Isso que ele visse acabaria por se mostrar, pois ver isso é permissão da tradição do idioma português e ela não permitiria o que não pudesse ser contido em si. Com relação a essa não contenção em si, gostaríamos de mostrar o que o idioma alemão não contém em si que, opostamente, o português contém ao máximo. Quem nos revela isso é o próprio Leibniz: “Em compensação, ela (a língua alemã) é, sem dúvida, a mais imprópria para exprimir as ficções, em todo caso mais imprópria que a francesa, a italiana e as outras derivadas do latim.”[7]  Leibniz faz essa ressalva, acreditando-a ser na verdade uma vantagem. Para esse claro vidente de um mundo concreto e mecânico, sua língua não se dar às ficções é grande vantagem. Em contraponto, nós, falantes de uma língua cuja tradição tem sua grandeza justamente no que Leibniz chama de ficção, na literatura, nós obviamente não vemos o mundo nem com essa pretensamente superior concreção do idioma alemão, nem com a sua mecânica. Como é, então, nossa vista para o mundo e como, portanto, Heidegger e Hegel o veriam em português? Quem nos responde é Caetano Veloso. Ele, em sua música “Língua”, fazendo clara referência a Heidegger, diz: “- se você tem uma idéia incrível / é melhor fazer uma canção / está provado que só é possível filosofar em alemão.” Essa resposta, ainda mais provocadora que a afirmação de Heidegger, descreve o caráter do uso de nosso idioma e, logo, o modo como por ele vemos o mundo. Dentre as várias revelações dessa "resposta", destacam-se duas: fazer canção é melhor que filosofar e, em português, é melhor fazer uma canção. Caetano diz: "é melhor fazer uma canção", mas não só isso. Se fizermos o necessário paralelo com a Segunda parte da frase em que ele diz: "só é possível filosofar em alemão", devemos completar a primeira e dizer: "é melhor fazer uma canção em português".  Agora podemos entender melhor a canção a qual ele se refere, pois apenas pode ser uma que se dê no idioma português e não em notas musicais. Essa canção é a musicalidade de nossas letras. Caetano Veloso está-nos apontando o que temos feito deveras, está-nos apontando a tradição de nosso idioma. Esse seu apontamento remete-nos aos que vem forjando essa vista para o mundo, aos nossos escritores. Todas as possibilidades de nosso idioma foram conquistadas por eles, contudo eles conquistaram-nas para a escrita literária, a qual foge muito à filosófica. A principal diferença de uma a outra está em que, enquanto para o filosofar, a língua é um instrumento para mostrar algo; para o fazer literatura a língua mostra-se a si mesma. Para o filosofar a língua deve ser o mais transparente possível a fim de se ver através dela o que ela pretende mostrar, pois isso está além de sua aparência. Para a literatura, acontece o inverso, a língua deve ser o mais aparente possível a fim de se ver a própria língua, pois ela está em sua aparência. Estamos avisados de que há filósofos com estilo refinado e há poetas profundos; isso, porém, não nos contradiz. O estilo do filósofo é requerimento de sua mostra, já o vimos em Demócrito, e os limites desse estilo demarcam-se por essa mesma mostra. A profundidade do poeta é outro ornamento de seu estilo, e está condicionado à beleza desse mesmo estilo. Essa fato é de fácil verificação, basta-nos comparar traduções; há as que privilegiam a profundidade, há as que o estilo. As primeiras podem ser-nos interessantes, as segundas são-nos belas. E qual, afinal de contas, é o destino da poesia, senão a beleza?
Mesmo sabendo que a profundidade é puro ornamento no escritor, podemos ir buscar nele um pensamento, afinal o único que temos. Quiçá encontremos em Machado de Assis um grande psicólogo, como o foi Nietzsche; e em Carlos Drummond de Andrade, um grande pensador do ser, como o foi Heidegger.
 Ezra Pound em seus “Ensaios Literários” escreveu que “os artistas são as antenas da raça,”[8] ou seja, aqueles que primeiro captam o espírito do tempo e o comunicam aos demais. No caso da Alemanha, suas antenas sempre foram os filósofos, no do Brasil, os nossos escritores. Precisamos ouvi-los, em ordem a estarmos no tempo certo e conhecermos a tradição de nosso idioma. Essa é a tradição que temos e é somente a partir dela que poderemos formar outra, outra porventura filosófica. “O povo faz o idioma e o idioma faz o povo”, disse Unamuno, e completa: “cada idioma é o melhor para o povo que o fala.”[9] Precisamos deixar nosso idioma nos fazer para procedermos a fazê-lo e, no nosso caso, essa feitura toma o aspecto de transformação.
A pretensão de tornar o português em um idioma perfeito para o pensamento passa pelo obstáculo de nossa vista. Primeiro é preciso ver depois mostrar o visto, acontece que a primazia dessa vista é a do próprio meio pelo qual ela se faz ver, o idioma português. A mostra dessa vista, contudo, não é entregue, não nos é possível circunscrever o que vemos na língua e então entregá-la como um livro para outros a verem. É-nos possível, apenas, trazer os outros para o mesmo lugar desde onde se descortinae essa vista para que eles, como nós, vejam seu alcance. Portanto, falar não é nunca uma entrega, mas um convite. Desse modo, nós, por meio de nossa exposição, estamos convidando aqueles que pensam em português a atentarem ao uso feito dele por nossos escritores, e ao próprio uso de modo a descobrirmos-lhe as possibilidades de um pensar claro e eficaz.    


[1] Unamuno, Miguel. Obras Completas Vol. VI: "La Raza y la Lengua". Ed.: Vergara. 1958. Barcelona. Pg. 768: " Es indudablemente que la lengua alemana tiene grandes ventajas para la investigación filosófica. Un prefijo, de significación necessariamente abstrata y algo vaga, una raíz, abstrata también, y un sufijo, igualmente abstrato, (...) eso permite pasar de unos conceptos a otros com gran facilidade y sutileza y refinar concepciones filosóficas." 
[2] Snell, Bruno. Der Aufbau der Sprache. Claasen Verlag Hamburg, 1952. Pg. 194. "Demokrit, der Begründer der Atomlehre, hat dann als erster eine 'naturwissenschatliche' Deutung der Welt umfassend durchzuführen gesucht. Um dies mit der ihm zur Verfügung stehenden Sprache zu erreichen, mub er bestimmte Sprachformen eliminieren und andere hervorkehren: er entfaltet sein philosophisches System dadurch, dab alle die Sprachformen, die vom Sinn-Phänomen des 'Darstellens' geprägt sind, allein für ihn relevant sind."
[3] Idem, Ibidem. Pg. 12 ."Da nun aber die Entwicklung des Sprechens an die Entfaltung des Denkens geknüft ist, führt solche Sprachbetrachtung auf das Selbstbewubtsein des Menschen und auf die Entdeckung des Geistes (...), und wenn wir an der Sprache die Bedingungen der Möglichkeit des Denkens begreifen, ist auf diesem Weg von dem ursprünglichen zum komplizierten und diferenzierten Sprechen vielleicht auch etwas darüber zu lernen, was unser Denken eigentlich ist, welches geheime System ihm zugrunde liegt."              

[4] Belaval, Yvon. Études leibniziennes. Ed.: Gallimard. 1976. Pg. 35. "(...) la superiorité de la langue allemande ne tient pas à son origine, mais à l'emploi ininterrompu que en a été fait par un peuple."
[5] Idem, Ibidem. Pg.: 28 "(...) elle est, pour le réel, à l'envi de toutes les outres, la plus dense e la plus parfaite; c'est qu'aucun peuple n'a clutivé avec plus de soin, depuis de nombreux siècles, les arts concrets et mécaniques; à tel point que les Turcs eux-mêmes, dans les mines Grèces et d'Asie Mineure désignent les métaux par des noms germaniques."
[6] Steinar, George. Linguagem e Silêncio. Trad.: Gilda Stuart e Felipe Rajabally. Ed.: Companhia da Letras. 1988. São Paulo. 
[7] Belaval, Yvon. Études leibniziennes. Ed.: Gallimard. 1976. Pg.: 29: "En revanche, elle est sans doute la plus impropre à exprimer les fiction, en tou cas plus impropre que le français, l'italian et autrs rejetons du latin;"

[8] Pound, Ezra. Literary Essays of Ezra Pound. Ed.: Faber and Faber Limited. London. Pg. 58.: "Artists are the antennae of the race."
[9] Unamuno, Miguel. Obras Completas Vol. VI: "La Raza y la Lengua". Ed.: Vergara. 1958. Barcelona. Pg.: 176." El pueblo hace el idioma y el idioma hace el pueblo" (...) "todo idioma es el mejor para el pueblo que lo habla."

domingo, 12 de junho de 2011

“Até que a morte vos separe”




            Ouvimos a frase e já nos rimos de sua antiguidade. Houve um tempo em que ela tinha seu lugar, mas há muito foi banida. Hoje a achamos ridícula, e talvez tenhamos razão. Tenhamos também, contudo, ainda um pouco de hospitalidade e perguntemos: “-Por que esta frase soa agora tão ridícula?” Ora, ela é uma frase tradicional e participou da felicidade de muitos e manteve outros tantos sob a necessidade de, ao menos, aparentarem felicidade. Ela não é, portanto, uma frase qualquer.
            Com não ser uma frase qualquer, qual a sua distinção? Ela é dita pelo padre na ora em que abençoa a união de um homem e uma mulher, união que, de acordo com ela, deve ser eterna. A frase é uma benção. Ela incumbe o casal da responsabilidade de manter-se junto em todo o momento, só se separando com a morte de um ou outro. O casal aceita essa incumbência e, com ela, a responsabilidade. Mas aceita sabendo que responsabilidade é essa?
            Esperemos ainda um pouco para chegarmos a qualquer resposta. Tomemos a situação em que a frase é dita; não, ainda melhor, vamos um pouco atrás e vejamos o que faz o casal chegar diante do padre para dele ouvir: “ – Até que a morte vos separe”.
            Um dia, um homem e uma mulher se conhecem. De cara, um acha o outro interessante, ou não. De qualquer modo, eles se conhecem e, sabe-se lá por que, passam a namorar. Daí eles se tornam íntimos, conhecem-se melhor e tomam a partir do que conhecem um do outro e a partir do que conhecem de si mesmos, tomam a decisão de se casar. Vão então para diante do padre e ouvem a frase: “- Até que a morte vos separe”.
(antes de continuar, gostaria de observar-lhes que esse “vão então para diante do padre” não quer necessariamente dizer vão então para diante do padre. Pode ser que não haja padre, que não haja pastor, que não haja rabino, que não haja quem diga a frase, mas ela continua ali onde os dois se comprometem e, mesmo não ouvida, ainda assim é o que orienta a união dos dois).
            Como estava dizendo, eles vão e ouvem a tal frase, e concordam com ela. Aliás, concordaram com ela desde que se decidiram pelo casamento. Sendo assim, o importante é essa decisão, e como nós sabemos, ela foi tomada a partir do que os dois conheciam um do outro e um e outro de si mesmos. Importa-nos, portanto, saber o que é isso que eles conheciam.
            O que passa pela cabeça de alguém que decide se casar é mais ou menos o seguinte: “- Bem, conhecendo-o como o conheço, posso muito bem casar-me com ele”; e assim também pensa o homem com relação à mulher. Com isso, casa-se cada um com uma pessoa que conhece e só se casa porque a conhece. Os dois, portanto, são sinceros. Entre pensar tal como supus acima que pensassem e tomar a decisão de se casar há ainda um pensamento que se não é tido provavelmente causará problemas a quem não o teve, porque há um lugar certo para ele: “- Se ele continuar sendo o que ele é e eu continuar sendo o que sou, nós nunca nos separaremos”. O problema é que, embora tenha ele um lugar privativo entre o achar que pode casar-se e a decisão de casar-se, ainda assim esse pensamento raramente ocupa esse lugar. Pois se ele toma seu lugar, surge o cuidado principal para um casamento: a necessidade de um e outro continuarem sendo o que são um para o outro. Apesar disso, se não há tal pensamento, não há consequentemente tal cuidado e dificilmente há casamento duradouro.
            Os casamentos não duram e isso não é só de hoje, o que agora acontece é que todos veem que eles não duram, mas o homem é um só em todo o tempo e em todo o lugar. O que ora acontece é os olhos verem o que há muito se escondia sob aparências: a falência matrimonial. E não é precisamente essa falência o que fez a nós, homens do presente, parecer ridícula a frase “até que a morte vos separe”? Sim, os casamentos dissolvem-se e a frase perde seu sentido. Ah! Que engano, muito pelo contrário, seu sentido afirma-se aí em toda a sua precisão.
            Quando os dois decidiram se casar partindo do que conheciam um do outro e não levaram em consideração o que não conheciam, ou seja, que um e outro poderiam deixar de ser o que eram, e isso principalmente se ambos não cuidassem em manter-se um para o outro e cada qual para si o que eles eram, se não houve tão consideração e nem o cuidado, não há surpresa se de repente um casal extremamente apaixonado e feliz dissolve-se em desavenças e, quem sabe, em ódio.
            O que houve, aliás, o que não houve? Não houve a consideração, não houve cuidado. Primeiro não consideraram o que um não conhecia do outro, e depois não cuidaram em manterem-se os mesmos um para o outro e cada qual para si. Amaram-se e foram sinceros em seu amor, prometeram e foram sinceros em sua promessa, mas descuidaram-se e foram sinceros com a decadência de seu amor e de sua promessa.
            A frase permanece e é profética: “até que a morte vos separe”. Um ou outro acaba por morrer quando por descuido deixou de ser o que era tanto para si quanto para o outro. “-Ele não é mais o mesmo”; “- Ela não é mais a mesma”; “- Ele morreu para mim”; “- Ela morreu para mim”, e a morte os separou. 

domingo, 5 de junho de 2011

Escuridão e caos: sítios da linguagem









Nenhuma língua pode descrever com rigor e precisão como todo e qualquer acontecimento se dá, ou como todo e qualquer pensamento, impressão, interpretação de realidade se dão.

El hombre (...) no ve, ni oye, ni toca, ni gusta, ni huele más que lo que necesita para vivir y conservarse. Si no percibe colores ni por debajo del rojo ni por encima del violeta, es acaso porque le bastan los otros para poder conservarse. Y los sentidos mismos son aparatos de simplificación, que eliminan de la realidad objetiva todo aquello que no nos es necesario conocer para poder usar de los objetos a fin de conservar la vida. En la completa oscuridad, el animal que no perece, acaba por volverse ciego.”

Do mesmo modo que “los sentidos mismos son aparatos de simplificación”, a língua de que nos valemos cotidianamente é um aparelho de simplificação. Ela não é, contudo, imperfeita. Sua suposta imperfeição é verificada quando se tem a pretensão de usá-la para além de suas possibilidades, assim como aconteceria se intentássemos ver para além do que nossa vista alcança. Está certo que a ciência em geral tenta criar aparelhos que, a princípio, complementariam os sentidos, tornando-os mais agudos e mais abrangentes; entretanto, isso não significa que eles, com o auxílio da ciência, deixem de ser aparelhos de simplificação, muito pelo contrário, é justamente aí que eles se investem de sua maior possibilidade de simplificação, pois vêem mais do mesmo, ouvem mais do mesmo, tocam mais do mesmo, cheiram mais do mesmo, falam mais do mesmo. A tarefa primordial dos sentidos, conservação da vida, mesmo na idade da ciência, não é posta de lado, ela apenas exige complementações. Mesmo novas linguagens foram criadas para suprir essa nova necessidade. A linguagem computacional em geral simplifica ainda mais a realidade em a reduzindo a dois dígitos, o 0 e o 1. Essa linguagem chama-se binária e é a da qual se valem os computadores para a realização de suas tarefas. Apenas se pode dizer que os sentidos sejam imperfeitos, quando não se têm bem claros os limites de uso deles. Se só se pede o que está dentro dos limites de possibilidade, por exemplo, do olfato, pode-se dizer que ele é perfeito. Se se espera ter olfato tão sensível quanto o de um cão, só aí se pode dizer ser o olfato imperfeito. Contudo é meu desconhecimento dos limites do olfato que me faz pensar assim. Quanto à língua, se pedimos a ela que seja mais do que é, só aí a consideramos imperfeita. Ela se limita a dar as ferramentas de descrição da realidade. Se pretendemos explicitar algo além da realidade tangível, ou seja, além da simples conservação da vida, então ela pára e mostra-se como uma ferramenta inadequada.  “A língua é para a filosofia, o que ela é para a música e para a pintura, de modo algum o meio correto de apresentação”. [1] Do mesmo modo que não esperamos que alguém pinte com palavras, não podemos esperar que alguém pense com palavras. O pensamento se dá como reconhecimento mudo. A tentativa de expressão desse pensamento, ela sim, só pode ser feita através das palavras de uma determinada língua, mas a apreensão do pensamento que elas encerram só é possível num reconhecimento do lugar de onde tal pensamento emerge. Mesmo na filosofia não se pode dizer que a língua seja imperfeita. Ela nunca pode, está fora de seus limites, o pensamento. Quem vê imperfeição nalguma língua para o pensamento não conseguiria apreender o pensamento ainda que ele se desse primordialmente nas palavras dessa língua. “A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,” [2] e enquanto disfarçado, o pensamento exige grande intimidade para ser reconhecido. Nesse sentido, também a poesia é disfarce. O que está disfarçado aí é algo ainda mais grave, mais surdo e mais mudo que o pensamento. Quem dá testemunho disso é Chico Buarque em sua música Choro Bandido quando diz que “(...) mesmo que você fuja de mim / por labirintos e alçapões / saiba que os poetas como os cegos / podem ver na escuridão” [3]. É na escuridão de luz, som, toque, gosto e odor que o poeta vê. Apenas habitando nessa mesma escuridão é possível ver tal como o poeta, e, portanto, reconhecer o que a escuridão resguarda. Talvez descubramos então que o que se resguarda fundo na escuridão seja a possibilidade mesma de toda e qualquer linguagem, seja a poética, seja a filosófica, e seja até a binária. Por esse motivo, o modo de encarar a linguagem, mesmo a ordinária, nunca é ordinário, pois para o poeta,

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
Os sítios escuros onde nasce o
‘de’, o ‘aliás’
o ‘o’, o ‘porém’ e o ‘que’, esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.


            O que Chico Buarque chama de escuridão é o mesmo que Adélia Prado chama de caos. Em ambos os casos, a apreensão do que se vela no escuro e do que se dispersa no caótico nos envolve de susto e terror; e se, deveras, ficamos assustados e aterrorizados é porque começamos a ver a escuridão. Ver a escuridão no caos, safar-se do caos na escuridão significa demorar onde é possível apreender a linguagem em seus próprios termos, que sempre se dão silenciosamente. “Pois a beleza é aquele grau do terrível que ainda conseguimos suportar” [4]. A linguagem possível do caos e da escuridão é sempre dolorosamente terrível, pois sempre bela. Ela nos remete à escuridão, ao caos; e se não nos escurecemos de terror nem nos perdemos no terrível, é “porque o belo, sereno, desdenha nos destruir” [5].

A poesia é essa linguagem terrível, é fronteira com sagrado, depois da qual só os Anjos habitam e, aí, mesmo se eu “gritasse (...) e mesmo que de repente um deles me acolhesse no coração: sucumbiria à sua existência mais forte” [6].

            Aqui há o que antes chamei de reconhecimento mudo. O pensamento, disse, não se dá em palavras, mas num reconhecimento mudo. As palavras apenas são um veículo de alusão a esse silêncio, são disfarces dele. Primeiro Chico Buarque se reconhece em Adélia Prado quando ambos falam do lugar desde onde surge a linguagem, que o primeiro chama de escuridão, e a segunda de caos. Depois é a vez de Rilke e Adélia Prado se reconhecem. O “acolher no coração do anjo” de Rilke é o mesmo que “entender Deus” da Adélia Prado, e o “sucumbir à existência mais forte do anjo” dele é “o morrer frente ao entendimento da linguagem” dela. A habitação no mesmo solo escuro e caótico é o único modo possível de pensamento, pois se dá no reconhecimento entre pensadores e poetas e no reconhecimento do que se vela na escuridão e do que se abriga no anonimato do caos. Nesse texto, Unamuno, Chico Buarque, Adélia Prado e Rilke vêem no escuro e ordenam sua poesia a partir do caos. Nesse sentido, também o pensador Nietzsche pode ser chamado, quando ele escreve que “é preciso ainda ter caos em si para poder gerar uma estrela dançante”. [7] A estrela que brilha a partir do caos deve seu brilho a essa proveniência e só brilha para quem a reconhece em seu próprio caos interior.

 O poeta, assim como o pensador, procura lançar luz sobre a escuridão e dar nome ao caos, mas o mais que pode é arrastar a nós com sua poesia a essa mesma escuridão para que nós mesmos possamos ver; e a esse caos para que nós mesmos percamos nossos nomes, pois só assim poderemos habitar a linguagem silenciosa e anônima na qual todos já habitamos sem jamais reconhecer.





[1] “Die Sprache ist für die Philosophie, was sie für Musik und Malerei ist, nicht das rechte Medium der Darstellung. 1275”. Novalis. Disponível em  http://gutenberg.spiegel.de/novalis/fragment/philolog.htm. Acesso em: 12 Mar. 2003.
[2] Prado, Adélia. Poesias reunidas. São Paulo: Siciliano, 1998.
[3] De Holanda, Chico Buarque. Choro Bandido, In: Paratodos.São Paulo: BMG, 93.
[4] Rilke, Rainer Maria. Die Erste Elegie. In: Duiniser Elegien: „Denn das Schöne ist nichts
als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen.“
Disponível em http://gutenberg.spiegel.de/rilke/elegien/duineser.htm.  Acessado em 03/05/2006

[5] Idem, ibidem: „weil es gelassen verschmäht, uns zu zerstören“.
[6] Idem, ibidem: „(...) wenn ich schriee (...)und gesetzt selbst, es nähme
einer mich plötzlich ans Herz: ich verginge von seinem
stärkeren Dasein“.

[7] Nietzsche, Friedrich: Werke und Briefe: Zarathustras Vorrede. Friedrich Nietzsche: Werke, pg. 6300
(Cf. Nietzsche-W Vol. 2, pg. 284) (c) C. Hanser Verlag: man muß noch Chaos in sich haben, um einen tanzenden Stern gebären zu können. Programa disponível em