quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O  Fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Vi uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros, in Ensaios Fotográficos




               
                Uma fotografia registra imagem. No entanto, a força da fotografia não reside na imagem registrada, mas no que não se registra na imagem. Um exemplo: quando vemos um pôr do sol lindo, queremos registrar o lindo mais que a mera imagem do pôr do sol; assim como queremos registrar o nosso entusiasmo diante dele. No entanto, nem o lindo nem o entusiasmo são registráveis. Assim a imagem é a ponte que nos leva àquele momento, o laço que nos prende ao que sentimos ao vermos o pôr do sol antes de fazermos a imagem fotográfica. Este exemplo diz respeito à experiência particular dificilmente transmissível, diz respeito às memórias de cada um. Nossas fotos vontade de registro de momentos intensos vividos por nós não são universais. Isso significa que elas não têm o poder de comover os que não participaram daqueles momentos (embora esta seja uma possibilidade mesmo assim). Isso porque é preciso bem pouco para que nos lembremos de algum momento feliz ou triste e nos emocionemos com uma foto que o registra, pois temos as lembranças que imediatamente se vinculam à foto. Para aqueles que não têm essas lembranças, torna-se muito difícil a comoção. Por conta disso, essas fotos pessoais não precisam ser muito elaboradas, não precisam de luz especial, não precisam de trato específico. Elas estão fortemente vinculadas ao momento e à emoção por intermédio da lembrança. Levando isso em conta, se não temos esse momento e essa emoção, essas fotos pessoais nos dizem pouco. Há, porém, fotos que nos dizem muito e que não estão vinculadas a nenhum momento nem lembrança pessoais. Em que reside a força comovedora dessas fotos? Certamente não na mera imagem, pois, como dissemos acima, a imagem pura e simples não tem força, sim o que a imagem traz consigo. Mas o que pode a imagem trazer que não esteja vinculado à lembrança? A imagem pode trazer “o perfume” do Jasmim, “a existência” da lesma. E quanto mais conseguir mostrar por intermédio da imagem o que não está na imagem, mais forte ela será. O trabalho do fotógrafo é justamente este: mostrar com a imagem o que não está na imagem de modo a que todos possam ver, não apenas ele que sentiu a presença desse silêncio quando fotografou.
                Cabe-nos perguntar, porém, qual a qualidade disso que pode ser mostrado sem estar na imagem? É preciso que seja algo compartilhável, ou seja, não pode se tratar de algo de todo particular, mas tem de ser algo universal. Só assim todos ganham a possibilidade de ver o que está para se mostrar por intermédio da imagem. Para chegarmos ao que é universal no ser humano, é preciso retirar-lhe tudo que é particular, todas as suas peculiaridades. Ao fazermos isso, chegamos a um conjunto de coisas, como as emoções, que participam da existência de todos os seres humanos. Consequentemente podemos chamar tudo isso que participa de todas as existências humanas de o essencial no ser humano. O que lhe é essencial é universal, pois une o que é o humano em igualdade para além de todas as suas diferenças. Percebendo tal fenômeno, podemos dizer, então, que o que se mostra numa fotografia forte ou artística para além da lembrança e por meio da imagem é a essência do que participa da existência humana. E quanto melhor a fotografia mostrar isso, mais forte ela será e mais tocará o espectador, aproximando-o, assim, de todos os seres humanos de modo silencioso e invisível.


Alexander de Carvalho

Nenhum comentário: