sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Trabalho para as turmas de Filosofia e Ética do Direito

Suponhamos que, durante toda a vida, você haja procurado ser bom, cumprindo o que entende seja o seu dever e tentando fazer o bem a seus concidadãos. Suponhamos, ainda, que muitos deles reprovam o seu comportamento e o encaram como um perigo para a sociedade, embora disso não possam oferecer qualquer prova. Suponhamos, ainda mais, que você é acusado, julgado e condenado por um tribunal de seus pares, de uma forma que lhe parece, com inteira honestidade para consigo próprio, injusta. Suponhamos, finalmente, que estando você aprisionado, e aguardando execução, seus amigos conseguem fazer surgir, para você e sua família, possibilidade de fuga e de exílio. Asseguram esses amigos dispor de meios para os subornos necessários e garantem que sua fuga não os colocará em perigo; que, fugindo, você gozará de vida mais longa; que sua mulher e filhos estarão melhor; que seus amigos poderão continuar a vê-lo. Diante disso, quê faria você, aproveitaria a oportunidade? (a resposta a essa pergunta não vale ponto, apenas expressa a opinião do aluno)

Questões sobre o texto

1) Justifique a decisão de fugir.
2) Levando em consideração o bem comum, que argumentos poderiam ser levantados para que não se fuja?

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Origem e evolução do nosso calendário

Manuel Nunes Marques

Desde a pré-história que o Homem ficou deslumbrado pela sucessão dos dias e das noites e pelo desenrolar das fases da Lua: estes fenómenos conduziram às noções de dia e de mês. A noção de ano é menos evidente e foi só com o desenvolvimento da agricultura que os povos primitivos se aperceberam do ciclo das estações. São, portanto, o dia, o mês lunar ou lunação e o ano os períodos astronómicos naturais utilizados em qualquer calendário. Vamos precisar melhor cada um deles.
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Conceitos

O dia solar verdadeiro, intervalo de tempo entre duas passagens consecutivas do Sol pelo meridiano dum lugar, varia entre 23 h 59 m 39 s e 24 h 00 m 30 s. Estas variações, devido às desigualdades que afectam a ascensão recta do Sol, obrigam-nos a utilizar um dia civil, com a duração de 24 horas. Este dia, definido em função do dia solar médio, começa à meia-noite e termina à meia-noite seguinte.

A lunação, intervalo de tempo entro duas conjunções consecutivas da Lua com o Sol, também não é um valor constante, mas varia entre 29 dias e 6 horas e 29 dias e 20 horas. O seu valor médio, conhecido com grande precisão, é de 29 d 12 h 44 m 02,8 s. A revolução sinódica da Lua está na origem dos calendários lunares, em que os meses têm alternadamente 29 dias e 30 dias. O seu valor médio é, portanto, de 29,5 dias, diferindo 44 m do mês sinódico.

Em Astronomia consideram-se várias espécies de ano. Iremos referir-nos apenas ao ano sideral e ao ano trópico.

O ano sideral, duração da revolução da Terra em torno do Sol, é igual a 365 d 06 h 09 m 09,8 s. É este ano que intervém na terceira lei de Kepler da mecânica celeste, ao ligar as durações das revoluções dos planetas com os eixos maiores das órbitas.

O ano trópico, tempo decorrido entre duas passagens consecutivas do Sol médio pelo ponto vernal, é actualmente de 365 d 05 h 48 m 45,3 s. É mais curto do que o ano sideral, devido à precessão dos equinócios, que faz retrogradar o ponto vernal de 50,24 segundos de arco por ano. É o ano trópico que regula o retorno das estações e que intervém nos calendários solares.

Há ainda os calendários luni-solares, que procuram harmonizar as lunações com a revolução trópica do Sol.

O protótipo actual de calendário lunar é o calendário islâmico; do calendário solar é o calendário gregoriano; do calendário luni-solar é o calendário israelita. Mas também o calendário gregoriano conserva, de certo modo, uma base luni-solar no que diz respeito às regras para a determinação da data da Páscoa, a que procuraremos mais adiante fazer referência.

Um outro período de tempo utilizado nos calendários é a semana de sete dias, cuja origem se desconhece. É provável que estivesse relacionada com o mês lunar, visto que sete dias são aproximadamente um quarto de lunação, o intervalo aproximado entre a Lua cheia e o quarto minguante, ou talvez com o número dos sete astros principais do firmamento (os cinco planetas conhecidos na Antiguidade mais o Sol e a Lua). Mas é provável que a escolha de um intervalo de sete dias se deva ao carácter sagrado do número sete entre os judeus. Seja como for, o ciclo semanal de sete dias propagou-se inicialmente para oriente e só bastante mais tarde chegou ao ocidente, encontrando-se hoje praticamente incorporado em todos os calendários, como ciclo regulador das actividades laborais.

Calendários antigos

Os mais primitivos calendários do velho Continente, de que a História nos proporciona uma informação concreta, são o hebreu e o egípcio. Ambos tinham um ano civil de 360 dias: curto para representar o ciclo das estações, mas grande para corresponder ao chamado "ano lunar" , que se define como um período de tempo igual a 12 lunações completas existentes no ano trópico, ainda desconhecido.

Ignora-se como os hebreus dividiam o ano, mas depreende-se que já utilizavam a semana, visto que seguiam o mesmo princípio para contar os anos, agrupando-os em septanas ou semanas de "sete anos". Pelo contrário, os egípcios dividiam o ano em 12 meses de 30 dias e cada mês em três décadas. Os egípcios também dividiam o ano em três estações, de acordo com as suas actividades agrícolas dependentes das cheias do Nilo: a estação das inundações; a estação das sementeiras e a estação das colheitas.

Não satisfeitos com o ano de 360 dias, estes povos procuraram aperfeiçoar o seu calendário, embora seguindo caminhos diferentes. Os hebreus voltaram-se para o sistema luni-solar, ajustando os meses com o movimento sinódico da Lua e coordenando o ano com o ciclo das estações. Por sua vez, os egípcios abandonaram por completo o sistema lunar para seguir unicamente o ciclo das estações, tal como as observavam no Egipto, visto desconhecerem ainda a duração do ano trópico.

Depois de muitas reformas, por volta do ano 5000 a. C., os egípcios estabeleceram um ano civil invariável de 365 dias, conservando a tradicional divisão em 12 meses de 30 dias e 5 dias adicionais no fim de cada ano. O atraso aproximado de 6 horas por ano em relação ao ano trópico motivou que, lentamente, as estações egípcias se fossem atrasando, originando uma rotação destas por todos os meses do ano. Por esse motivo, os egípcios começaram uma cuidadosa observação no ano 2783 a. C., comprovando que em 1323, também a. C., as estações voltavam a coincidir nas mesmas datas do calendário. A este período de 1461 anos egípcios e que corresponde a 1460 anos julianos, deu-se o nome de período sotíaco, de Sothis ou Sirius, em cujo nascimento helíaco se basearam as observações.

Apesar desta comprovação, os egípcios não fizeram qualquer correcção no seu ano vago e um segundo período sotíaco seria iniciado em 1323 a. C. Porém, no ano 238 a. C., houve uma tentativa para reformar o calendário egípcio por forma a pô-lo de acordo com o ciclo das estações mas sem êxito, devido à oposição de determinadas classes sacerdotais. Só no ano 25 a. C. foi adoptada a reforma juliana, introduzindo, de 4 em 4 anos, 6 dias adicionais em vez de 5.

Os gregos estabeleceram um ano lunar de 354 dias, que dividiram em 12 meses de 30 e 29 dias, alternadamente. Por conseguinte, tinha menos 11 dias e 6 horas do que a ano trópico, sendo necessário fazer intercalações para estabelecer a devida correspondência. Estas intercalações tinham o nome de dietérida, ¾ ciclo de dois anos ¾ ; trietérida, ¾ ciclo de três anos ¾ , etc. Os meses, como no calendário egípcio, eram dedicados aos deuses e neles se celebravam festas, não só em honra do deus correspondente, mas também muitas outras dedicados aos astros, às estações, etc.

No primitivo calendário romano, o ano tinha 304 dias distribuídos por 10 meses. Os 4 primeiros tinham nomes próprios dedicados aos deuses da mitologia romana e provinham de tempos mais remotos, em que, provavelmente, se aplicaram às 4 estações; os 6 restantes eram designados por números ordinais, indicativos da ordem que ocupavam no calendário, segundo o esquema:

1.º Martius 31 dias, dedicado a Marte
2.º Aprilis 30 dias, dedicado a Apolo
3.º Maius (maior) 31 dias, dedicado a Júpiter
4.º Junius 30 dias, dedicado a Juno
5.º Quintilis 31 dias (n.º ordinal)
6.º Sextilis 30 dias
7.º September 30 dias
8.º October 31 dias
9.º November 30 dias
10.º December 30 dias

Como se depreende, tratava-se dum calendário sem qualquer base astronómica, pois os períodos nele definidos não tinham qualquer relação com os movimentos do Sol ou da Lua. Por isso, no tempo de Rómulo já foram introduzidas algumas intercalações por forma a harmonizar o calendário vigente com os citados períodos astronómicos.

O calendário de Rómulo foi reformulado por Numa Pompílio, o qual, seguindo o exemplo dos gregos, estabeleceu o ano de 12 meses, mas introduzindo em primeiro lugar o mês de Januarius, dedicado a Jano, e em último lugar o mês de Februarius, dedicado a Februa, ao qual os romanos ofereciam sacrifícios para expiar as suas faltas de todo o ano. Este foi o motivo por que o mês de Februarius foi colocado no fim. Mas Numa modificou também a duração dos meses, deixando o calendário do seguinte modo:

1.º Januarius 29 dias
2.º Martius 31 dias
3.º Aprilis 29 dias
4.º Maius 31 dias
5.º Junius 29 dias
6.º Quintilis 31 dias
7.º Sextilis 29 dias
8.º September 29 dias
9.º October 31 dias
10.º November 29 dias
11.º December 29 dias
12.º Februarius 27 dias
TOTAL 354 dias

Consequentemente, o ano tinha 354 dias (ano lunar dos gregos). Mas esta estranha distribuição dos dias pelos meses era devida à superstição dos romanos que tomavam por nefastos os números pares. Pela mesma razão, consideraram nefasto o ano de 354 dias e aumentaram-no para 355 dias, atribuindo o dia excedente a Februarius, que passou a ter 28 dias.

Entretanto, os romanos sentiram também a necessidade de coordenar o seu ano lunar com o ciclo das estações e seguindo, de certo modo, o exemplo dos gregos, estabeleceram um rudimentar sistema luni-solar, introduzindo no seu calendário, de dois em dois anos, um novo mês: Mercedonius, assim chamado por estas intercalações serem feitas na época em que os senhores outorgavam as suas mercês aos escravos (uma espécie de gratificações voluntárias pelos serviços prestados).

O Mercedonius, cuja duração alternava de 22 ou 23 dias, intercalava-se entre 23 e 24 de Februarius, que se interrompia, completando-se depois da mesma. O ano assim formado tinha, em média, 366,25 dias, portanto mais um dia do que o ciclo das estações. Foram estabelecidos várias normas para atender a esse aspecto que na prática não resultaram, pois as intercalações passaram a ser feitas de acordo com interesses particulares ou políticos: os pontífices alongavam ou encurtavam o ano conforme os seus amigos estavam ou não no poder. A desordem atingiu tal ponto que o começo do ano já estava adiantado de três meses em relação ao ciclo das estações.

Calendário juliano

Foi esta desordem que Júlio César encontrou ao chegar ao poder. Decidido a acabar com os abusos dos pontífices, chamou a Roma o astrónomo grego Sosígenes, da escola de Alexandria, para que examinasse a situação e o aconselhasse nas medidas que deveriam ser adoptadas.

Estudado o problema, Sosígenes observou que o calendário romano estava adiantado de 67 dias em relação ao ano natural ou ciclo das estações, Para desfazer essa diferença, Júlio César ordenou que naquele ano (708 de Roma, ou 46 a.C.), além do Mercedonius de 23 dias que correspondia intercalar naquele ano, fossem adicionados mais dois meses, um de 33 dias, outro de 34 dias, entre os meses de November e December. Resultou assim um ano civil de 445 dias, o maior de todos os tempos, único na história do calendário e conhecido pelo nome de Ano da confusão, pois, devido à grande extensão dos domínios de Roma e à lentidão dos meios de comunicação de então, nalgumas regiões a ordem foi recebida com tal atraso que já havia começado um novo ano.

Foi então abolido o calendário lunar dos decênviros e adoptou-se o calendário solar, conhecido por Juliano, de Júlio César, que começou a vigorar no ano 709 de Roma (45 a.C.), mediante um sistema que devia desenrolar-se por ciclos de quatro anos, com três comuns de 365 dias e um bissexto de 366 dias, a fim de compensar as quase seis horas que havia de diferença para o ano trópico. Suprimiu-se o Mercedonius e Februarius passou a ser o segundo mês do ano. Consequentemente, os restantes meses atrasaram uma posição, além da que já haviam atrasado na primeira reforma de Numa, com a consequente falta de sentido dos meses com designação ordinal. O valor médio do ano passou a ser de 365,25 dias e o equinócio da primavera deveria ocorrer por volta de 25 de Março.

Era a seguinte a ordenação e duração dos meses no primitivo calendário juliano:

1.º Januarius 31 dias
2.º Februarius 29 ou 30 dias
3.º Martius 31dias
4.º Aprilis 30 dias
5.º Maius 31 dias
6.º Junius 30 dias
7.º Quintilis 31 dias
8.º Sextilis 30 dias
9.º September 31 dias
10.º October 30 dias
11.º November 31 dias
12.º December 30 dias

Como se pode observar, a distribuição dos dias do ano fez-se alternando os meses de 30 e 31 dias, consoante fosse par ou ímpar a sua ordem no calendário nos anos bissextos, ficando Februarius com 29 dias nos anos comuns. Assim, por disposição de Júlio César, os romanos tiveram de abolir a sua prevenção contra os meses de dias pares, que sempre haviam considerado nefastos ou de mau agoiro.

Evolução do calendário juliano

Durante o consulado de Marco António, reconhecendo-se a importância da reforma introduzida no calendário romano por Júlio César, foi decidido prestar-lhe justa homenagem, perpetuando o seu nome no calendário, de maneira que o sétimo mês, Quintilis, passou a chamar-se Julius.

Também no ano 730 de Roma, o Senado romano decretou que o oitavo mês, Sextilis, passasse a chamar-se Augustus, porque durante este mês começou o imperador César Augusto o seu primeiro consulado e pôs fim à guerra civil que desolava o povo romano. E para que o mês dedicado a César Augusto não tivesse menos dias do que o dedicado a Júlio César, o mês de Augustus passou a ter 31 dias. Este dia saiu do mês de Februarius, que ficou com 28 dias nos anos comuns e 29 nos bissextos. Também para que não houvesse tantos meses seguidos com 31 dias, reduziram-se para 30 dias os meses de September e November, passando a ter 31 dias os de October e December. Assim se chegou à distribuição sem lógica alguma dos dias pelos meses, que ainda hoje perdura e que transcrevemos a seguir com os nomes actuais em língua portuguesa:

1.º Janeiro 31 dias
2.º Fevereiro 28 ou 29 dias
3.º Março 31 dias
4.º Abril 30 dias
5.º Maio 31 dias
6.º Junho 30 dias
7.º Julho 31 dias
8.º Agosto 31 dias
9.º Setembro 30 dias
10.º Outubro 31 dias
11.º Novembro 30 dias
12.º Dezembro 31 dias

De princípio, o calendário juliano conservou as letras nundinais para determinar a data dos mercados públicos, a divisão dos meses pelas calendas, nonas e idus e a nomenclatura ordinal dos dias. O dia excedente de Februarius, nos anos bissextos, era intercalado ¾ como o fora anteriormente o mês Mercedonius ¾ entre os dias 23 e 24. Quando Februarius passou a ter 28 dias nos anos comuns, o seu 23.º dia era o 6.º antes das calendas de Março. Portanto, o dia seguinte, que era intercalado de 4 em 4 anos, passou a designar-se por bissextocalendas (ou bissextus dies ante calendas Martii). Daí o nome de dia bissexto e, por arrastamento, de ano bissexto que hoje se dá aos anos em que o mês de Fevereiro tem 29 dias.

Mas o ciclo de 4 anos de Sosígenes começou por ser mal aplicado, pois em vez de se contarem 3 anos comuns e um bissexto, como, de facto, recomendava aquele astrónomo, os pontífices romanos falsearam a contagem ¾ ou a interpretaram mal, ainda que isso não pareça muito provável dada a sua simplicidade ¾ e intercalaram um ano bissexto de 3 em 3 anos. Assim, durante os primeiros 36 anos de vigência do calendário juliano foram intercalados 12 bissextos em vez de 9. Para remediar este erro, e como 12 bissextos correspondiam a 48 anos, César Augusto suspendeu as intercalações durante 12 anos, começando então a ser feita de 4 em 4 anos, como era correcto. Em geral, a cronologia não refere este facto e admite-se que o calendário juliano seguiu correctamente desde o princípio.

Por aquela época tiveram lugar na Terra Santa os mistérios da Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, o advento do cristianismo e a difusão desta doutrina. Tal ocorrência acabaria por ter bastante influência na evolução do calendário juliano: a fixação das regras para a determinação da data da Páscoa e a adopção oficial da semana no calendário romano.

Os cristãos da Ásia Menor celebravam a Páscoa cristã no dia 14 da primeira Lua que começasse em Março, qualquer que fosse o dia da semana em que ocorresse essa data. Pelo contrário, os cristãos do Ocidente celebravam-na no domingo seguinte a esse dia. Esta discrepância entre os cristãos do Oriente e do Ocidente na comemoração de tão importante acontecimento, deu origem a sérias polémicas entre os altos dignatários das duas Igrejas. A questão foi resolvida no concílio de Niceia (ano 325 da nossa era): Jesus Cristo ressuscitou num domingo, 16 Nissan do calendário judeu, coincidente com o plenilúnio do começo da primavera. O concílio decidiu manter estes três símbolos e acordou que a Páscoa passaria a ser celebrada universalmente, no domingo seguinte ao plenilúnio que tivesse lugar no equinócio da primavera ou imediatamente a seguir.

Os cristãos, que entretanto iam ganhando posições em toda a parte, precisavam da semana hebraica para o seu culto, visto que tinham de guardar o preceito do descanso ao sétimo dia e, assim, a semana acabou por ser adoptada no calendário romano, abolindo-se, pouco a pouco, as letras nundinais e o uso das calendas, nonas e idus.

Convém salientar que o ano de 365,25 dias do calendário juliano é cerca de 11 m 14 s mais longo do que o ano trópico. A acumulação desta diferença ao longo dos anos representa um dia em 128 anos e cerca de três dias em 400 anos. Assim, o equinócio da primavera que no tempo de Sosígenes ocorria por volta de 25 de Março, ao realizar-se o concílio de Niceia, quase quatro séculos depois, teve lugar a 21 de Março.

Problemas com o calendário juliano

Este deslocamento do equinócio no calendário, que não foi tomado em consideração pelos padres conciliares de Niceia, continuou a produzir-se à razão de um dia em cada 128 anos, causando várias preocupações à Igreja durante toda a Idade Média, visto que esse atraso poderia dar origem a novas discrepâncias sobre a data da Páscoa. O problema foi tratado nos concílios de Constança (1414) e Basileia (1436 e 1439), mas não foi possível chegar a qualquer acordo. Em 1474, o Papa Sixto IV encarregou Juan Muller de estudar o meio de reformar o calendário, mas este sábio alemão, conhecido pelo nome de Regiomontano, morreu dois anos depois sem ter apresentado as conclusões do seu trabalho. No concílio de S. João de Latrão (1511 a 1515) foi novamente abordado o problema e no de Trento (1545 a 1563) chegou a ser discutido um projecto de reforma que não pôde ser concretizado, apesar dos esforços do Papa Pio IV, dada a escassa preparação científica de então para reconhecer as vantagens.

Foi necessária a autoridade de um Papa com a cultura e a tenacidade de Gregório XIII para conseguir impor a reforma. Entretanto, o equinócio da primavera ocorria já por volta de 11 de Março. Depois de várias consultas a instituições científicas, em 1576 foi criada uma comissão encarregada de estudar o problema e as várias propostas existentes para o resolver. Nesta comissão, constituída pelos melhores astrónomos e matemáticos da época, teve papel preponderante o célebre padre jesuíta Clavius, que estudara matemática em Coimbra com Pedro Nunes.

Foi preferido o projecto de reforma apresentado pelo astrónomo Luís Lílio e comunicado em 1577 e 1578 a numerosos príncipes, bispos e universidades para darem a sua opinião. Só depois de analisadas pela comissão todas essas respostas, se resolveu adoptar finalmente o projecto de Lílio e em 24 de Fevereiro de 1582 Gregório XIII expediu a bula Inter Gravíssimas, que estabelecia os pontos essenciais do novo calendário.

Calendário gregoriano

A reforma gregoriana tinha por finalidade fazer regressar o equinócio da primavera a 21 de Março e desfazer o erro de 10 dias já existente. Para isso, a bula mandava que o dia imediato à quinta-feira 4 de Outubro fosse designado por sexta-feira 15 de Outubro. Como se vê, embora houvesse um salto nos dias, manteve-se intacto o ciclo semanal.

Para evitar, no futuro, a repetição da diferença foi estabelecido que os anos seculares só seriam bissextos se fossem divisíveis por 400. Suprimir-se-iam, assim, 3 dias em cada 400 anos, razão pela qual o ano 1600 foi bissexto, mas não o foram os anos 1700, 1800 e 1900, que teriam sido segundo a regra juliana, por serem divisíveis por 4.

A duração do ano gregoriano é, em média, de 365d 05h 49 m 12 s, isto é, tem actualmente mais 27s do que o ano trópico. A acumulação desta diferença ao longo do tempo representará um dia em cada 3000 anos. É evidente que não valia a pena aos astrónomos de Gregório XIII atender a tão pequena e longínqua diferença, nem na actualidade ela tem ainda qualquer importância. Talvez lá para o ano 5000 da nossa era, se ainda continuarmos com o mesmo calendário, seja necessário ter isso em consideração.

Portugal, Espanha e Itália foram os únicos países que aceitaram de imediato a reforma do calendário. Em França e nos Estados católicos dos Países Baixos a supressão dos 10 dias fez-se ainda em 1582, durante o mês de Dezembro (9 para 20 em França, 14 para 25 nos Países Baixos). Os Estados católicos da Alemanha e da Suíça acolheram a reforma em 1584; a Polónia, após alguma resistência, em 1586 e a Hungria em 1587. A repugnância foi grande mesmo nos países católicos, pois isso significava sacrificar 10 dias e romper aparentemente com a continuidade do tempo. Estas reacções mostram que o calendário toca o coração das pessoas e que convém tratar a questão com prudência.

Nos países protestantes a recusa foi mais longa. O erudito francês Joseph Scaliger, pelas suas críticas, contribuiu para organizar a resistência. "Os protestantes, dizia Kepler, preferem antes estar em desacordo com o Sol do que de acordo com o Papa". Os protestantes dos Países Baixos, da Alemanha e da Suíça só por volta de 1700 aceitaram o novo calendário. Mas nalgumas aldeias suíças foi preciso recorrer à força para obrigar o povo a fazê-lo. A Inglaterra e a Suécia só o fizeram em 1752; foi preciso então sacrificar 11 dias, visto que tinham considerado 1700 como bissexto. O problema na Inglaterra agravou-se mais porque também nesse ano fora decidido que o início do ano seria transferido para o dia 1 de Janeiro (até então o ano começava a 25 de Março). Deste modo, em Inglaterra haviam-se suprimido quase três meses no início do ano e em Setembro, com a adopção do calendário gregoriano, eram suprimidos mais 11 dias. Era demais para um povo fiel às tradições.

Os russos, gregos, turcos e, duma maneira geral, os povos de religião ortodoxa, conservaram o calendário juliano até ao princípio deste século. Como tinham considerado bissextos os anos de 1700, 1800 e 1900, a diferença era já de 13 dias. A URSS adoptou o calendário gregoriano em 1918, a Grécia em 1923 e a Turquia em 1926.

Em conclusão, actualmente o calendário gregoriano pode ser considerado de uso universal. Mesmo aqueles povos que, por motivos religiosos, culturais ou outros, continuam agarrados aos seus calendários tradicionais, utilizam o calendário gregoriano nas suas relações internacionais.

A seguir à implantação da reforma gregoriana, os cristãos suprimiram o descanso ao sábado, transferindo-o para o domingo em comemoração perpétua da Ressurreição de Cristo. Assim se quebrou a unidade de descanso no sétimo dia, estabelecido por Moisés há mais de 5700 anos. Seguindo o exemplo dos cristãos, também os muçulmanos renunciaram ao preceito mosaico de descanso ao sábado e transferiram-no para sexta-feira, em cujo dia da semana, dez séculos antes, o Alcorão foi revelado a Maomé e se deu a fuga deste de Meca para Medina (15 de Julho do ano 622 da era cristã).

Defeitos do calendário gregoriano

O calendário gregoriano apresenta alguns defeitos, tanto sob o ponto de vista astronómico (estrutura interna), como no seu aspecto prático (estrutura externa). Por isso, vários investigadores pertencentes a várias igrejas ou organismos internacionais e mesmo privados se têm ocupado activamente da reforma do calendário.

Sob o ponto de vista astronómico, o seu principal defeito é ser ligeiramente mais longo do que o ano trópico, o que se traduz por uma diferença de um dia em cerca de 3000 anos. Porém, esta pequena diferença não tem qualquer inconveniente imediato e uma reforma do calendário destinada a corrigi-la traria sérios problemas, porque iria criar uma descontinuidade com as consequentes complicações cronológicas.

O mesmo não acontece sob o ponto de vista prático, em que, de facto, se justifica uma modificação. Com efeito, o número de dias de cada mês é muito irregular (28 a 31 dias). O mesmo acontece com a semana, adoptada quase universalmente como unidade laboral de tempo, que não se encontra integrada nos meses e muitas vezes repartida por dois meses diferentes. Estas duas anomalias têm sérios inconvenientes numa distribuição racional do trabalho e dos salários, que são maiores do que à primeira vista se pode pensar. Até a própria economia doméstica se recente, visto que um salário mensal fixo tem de ser distribuído por um número diferente de dias.

Mais grave ainda é a mobilidade da data da Páscoa, que oscila entre 22 de Março e 25 de Abril, com as consequentes perturbações da duração dos trimestres escolares e de numerosas outras actividades (judiciais, económicas, turísticas, etc.) particularmente nos países cristãos em que as festas da Semana Santa têm uma grande importância.

Há ainda um outro ponto que julgo ser de interesse salientar. Diz respeito ao tratamento desigual que foi dado à Lua e ao Sol. Com efeito, os padres do concílio de Niceia e o Papa Gregório XIII ligaram o calendário ao Sol verdadeiro, mas tomaram para Lua pascal uma Lua média que, por vezes, se afasta bastante da Lua astronómica. Por esse motivo, podem dar-se desvios de uma semana ou mesmo de um mês na data da Páscoa.

Dada a importância do ciclo semanal no relacionamento entre os diferentes calendários e, inclusive, na resolução de algumas dúvidas, julgamos de interesse dizer mais alguma coisa sobra o assunto. No quadro junto estão indicados os respectivos nomes em latim e a sua correspondência com as línguas latinas. Só o português é que se afasta um pouco da tradição.

¾ Domingo: dia do Senhor. Dedicado ao Sol. O astro-rei era tudo para o homem primitivo: espantava as trevas, aquecia os corpos, amadurecia as colheitas. Enfim, o Sol era Deus; daí a designação de Dia do Senhor entre os latinos.

¾ Segunda-feira: dia da Lua. Depois do Sol e sempre no céu, a Lua era a impressão mais forte recebida pelo homem. Influía nas marés, no plantio, no corte das madeiras, talvez mesmo no nascimento das crianças. Daí a atribuir-lhe um dia da semana.

¾ Terça-feira: dia de Marte. Na escala dos poderes que governavam os céus, as trevas e os seres humanos, Marte pontificava. Era o senhor da guerra e, portanto, dos destinos das nações e dos povos. A sua influência era tão grande que, inclusive, no calendário romano lhe foi destinado um mês (Março).

¾ Quarta-feira: dia de Mercúrio. Era o deus do comércio, dos viajantes e dos ... ladrões! Mensageiro e arauto de Júpiter, protegia os comerciantes e os seus negócios; dada a importância que estas criaturas tiveram em todos os tempos e em todos os lugares, alcançaram para o seu deus a consagração de um dia da semana.

¾ Quinta-feira: dia de Júpiter. Honraria conferida ao pai dos deuses pagãos, comandante dos ventos e das tempestades. Daí a ideia de lhe atribuir um dia da semana, talvez para aplacar a sua fúria.

¾ Sexta-feira: dia de Vénus. Nascida da espuma do mar para distribuir belezas pelo mundo, Vénus representava para os pagãos os ideais da formosura, da harmonia e do amor. Daí a razão de merecer a homenagem de um dia da semana.

¾ Sábado: dia de Saturno. Saturno, deus especialmente querido dos Romanos, foi despojado, pelo uso e pelo tempo, da homenagem consistente em dar nome a um dia da semana. Em Roma eram celebrados grandes festejos em sua honra ¾ as Saturnais ¾ realizadas em Dezembro e que se prolongavam por vários dias. Mas a homenagem a Saturno, correspondente a um dia da semana, perdeu-se nas línguas latinas, em que se deu preferência ao termo hebraico Shabbath, que significa repouso, indicado na velha lei judaica como sendo o dia dedicado ao descanso e às orações. Mas a língua inglesa permaneceu fiei ao velho Saturno, chamando ainda ao seu sábado Saturday.

Quadro comparativo dos nomes dos dias da semana

Latim Italiano Francês Espanhol Português
Dies Dominica
(Dia do Senhor) Domenica Dimanche Domingo Domingo
Lunae dies
(Dia da Lua) Lunedi Lundi Lunes Segunda-feira
Martis dies
(Dia de Marte) Martedi Mardi Martes Terça-feira
Mercurii dies
(Dia de Mercúrio) Mercoledi Mercredi Miércoles Quarta-feira
Jovis dies
(Dia de Júpiter) Giovedi Jeudi Jueves Quinta-feira
Veneris dies
(Dia de Vénus) Venerdi Vendredi Viernes Sexta-feira
Saturni dies
(Dia de Saturno) Sabbato Samedi Sábado Sábado

As Eras

Ao longo desta exposição referimo-nos várias vezes à era de Roma e à era cristã. Talvez seja vantajoso dizer mais alguma coisa sobre o assunto. Os romanos datavam os seus anos a partir da fundação de Roma, "ab urbe condita" que, de acordo com a opinião de Varrão, remonta a 753 antes da era cristã. Mas os romanos contavam a sua era a partir de 21 de Abril. Assim, o ano 1 da era cristã corresponde cerca de 4 meses ao ano 753 de Roma e o resto ao ano 754. Por comodidade, recua-se muitas vezes de alguns meses a era de Roma e faz-se coincidir o ano 1 da nossa era com o ano 754 de Roma.

Só alguns séculos após o nascimento de Cristo é que se pôs a questão de ligar este acontecimento a uma origem de contagem do tempo. A proposta foi apresentada pelo monge cita Dionísío o Exíguo por volta do ano 532 da nossa era. Imediatamente adoptada pela Igreja, ela foi-se generalizando a todos os países católicos. Em Portugal utilizou-se a era de César ou hispânica até ao ano 1422. Esta era havia sido introduzido na Península Ibérica no século V para recordar a conquista da península por Caio Júlio César Augusto no ano 38 a. C. (ano 716 de Roma). Por determinação de D. João I, foi abolida a era de César e o ano 1460 desta era passou a ser o ano 1422 da era cristã.

Dionísio o Exíguo supunha, de acordo com as suas investigações, que Jesus Cristo tinha vindo ao mundo em 25 de Dezembro (VIII das calendas de Janeiro) do ano 753 de Roma e fixara nessa data o início da era cristã. Mas os cronologistas introduziram um atraso de sete dias, de maneira que o início da era cristã foi transferido para o dia 1 de Janeiro do ano 754 de Roma.

Actualmente parece provado que os cálculos não estavam correctos e que Cristo deveria ter nascido 5 a 7 anos antes da data em que se celebra o seu nascimento. Com efeito, essa data é posterior ao édito do recenseamento do mundo romano (ano 747 de Roma ou mais cedo) e anterior à morte de Herodes (ano 750 de Roma). Para alguns cronologistas, é sugerida a data de 747 de Roma, porque nesse ano Júpiter e Saturno estiveram em conjunção na constelação dos Peixes em Setembro e em Novembro e eles vêem neste fenómeno a "estrela de Belém". Mas, para não perturbar a cronologia já estabelecida, foi mantida a data inicialmente proposta, embora tivesse deixado de corresponder ao significado inicial.

É importante notar que na era cristã os anos são referidos a uma escala sem zero, isto é, a contagem inicia-se no ano 1 depois de Cristo, designando-se o ano anterior como ano 1 antes de Cristo. Por conseguinte, qualquer acontecimento ocorrido durante o primeiro ano da era cristã, embora seja apenas de um dia ou de um mês, conta-se como tendo ocorrido no ano 1 depois de Cristo. Por esta razão, o primeiro século, ou intervalo de 100 anos, da era cristã, terminou no dia 31 de Dezembro do ano 100 d. C., quando haviam decorrido os primeiros 100 anos após o início da era. O século II começou no dia 1 de Janeiro do ano 101 d. C. e assim sucessivamente. Consequentemente, o século XX começou no dia 1 de Janeiro do ano 1901 e terminará no dia 31 de Dezembro do ano 2000.

Esta forma pouco lógica de numerar os anos do calendário é particularmente inconveniente quando se trata de determinar intervalos de tempo que começam antes da origem da era cristã e terminam depois. Assim, por exemplo, o intervalo entre os anos 50 a.C. e 50 d.C. não é de 100 anos, mas apenas de 99. Em geral, estes intervalos de tempo obtêm-se diminuindo um ano, o que é necessário ter em conta ao investigar acontecimentos históricos ou fenómenos astronómicos da Antiguidade datados segundo a era cristã.

Este inconveniente é facilmente resolvido com a introdução dos números negativos, como aliás o fazem os astrónomos. Assim, o ano 1 a.C. corresponde ao ano 0, o ano 2 a.C. ao ano -1 e assim sucessivamente. As datas depois de Cristo exprimem-se da mesma maneira. Esquematizamos na figura junta a relação entre as duas contagens.

Era cristã 3 a.C. 2 a.C. 1 a.C. 1 d.C. 2 d.C.
Cômputo astronómico -2 -1 0 +1 +2

Para evitar estas dificuldades cronológicas do calendário, o erudito francês Joseph Scaliger propôs em 1582, no mesmo ano da reforma gregoriana do calendário, contar ininterruptamente os dias correspondentes a um período que fosse múltiplo dos períodos lunares e solares normalmente utilizados no calendário e suficientemente extenso para abarcar acontecimentos históricos desde a mais remota Antiguidade. Obteve assim um período de 7980 anos julianos, a que deu o nome de período juliano. Tomando como unidade prática o dia solar médio, começou a contar os dias numa sucessão contínua a partir do meio-dia do dia 1 de Janeiro do ano 4713 a.C. A escolha desta data, que à primeira vista pode parecer arbitrária, foi também determinada em função dos períodos utilizados.

Convém esclarecer que até 1925 o tempo solar médio era contado em astronomia a partir do meio-dia, para que as observações nocturnas caíssem sempre dentro do mesmo dia e não a partir da meia-noite, como é usual no tempo civil. O dia solar médio era então chamado dia astronómico. A partir de 1925, por acordo internacional, os dias solares médios passaram a contar-se com início à meia-noite tanto em astronomia como na vida civil e a designação de dia astronómico caiu em desuso. Mas os dias do período juliano, que começaram a contar-se de meio-dia a meio-dia segundo o uso astronómico da época, continuam a contar-se da mesma maneira, por razões óbvias de continuidade da escala.

Manuel Nunes Marques
Eng. Geógrafo
Director do Observatório Astronómico de Lisboa
Tapada da Ajuda
1349 - 018 LISBOA
email: mmarques@oal.ul.pt


Fonte: http://www.mat.uc.pt/~helios/Mestre/H01orige.htm

sábado, 28 de novembro de 2009

Capitalismo

A. C. Grayling
Birkbeck College London
Tradução de Maria de Fátima St. Aubyn
O problema com o sistema de lucro sempre foi ser substancialmente pouco lucrativo para a maioria das pessoas.

E. B. White
Poucas pessoas afirmariam, pelo menos abertamente, não desejar que todas as sociedades fossem justas e decentes. Claro que é mais fácil dizer que as sociedades deviam ser assim do que torná-las assim, especialmente numa era de capitalismo de mercado livre mundial que entrega a boa vida à maior parte dos residentes nos países industrializados avançados — países que, por conseguinte, são também o centro do poder e influência mundiais, o que faz não constituir surpresa que as virtudes do seu modo de vida económico surjam como inquestionavelmente superiores às alternativas. No Ocidente rico, é agora ortodoxo pensar que a ideologia do mercado livre ganhou a discussão — e, portanto, compreensivelmente, que o futuro, tal como o presente, lhe pertence — daí a declaração de Francis Fukuyama de que “a história chegou ao fim”. As vozes discordantes, por muito eloquentes e bem informadas, mal se ouvem no meio da autoconfiança retumbante desta opinião. Mas a história contada pelas vozes discordantes é profundamente perturbante e aponta argumentos poderosos a favor de uma maior justiça e sustentabilidade na economia mundial.

O capitalismo precisa do crescimento contínuo da produção e, portanto, do consumo, para se sustentar a si mesmo. Os benefícios daí colhidos sob a forma de tecnologia e melhoria das condições de vida são óbvios e palpáveis no Ocidente rico. Mas, dizem as vozes discordantes, o preço está a revelar-se demasiado elevado, especialmente em termos de danos infligidos ao ambiente, da dívida paralisante do terceiro mundo, das disparidades insustentáveis entre ricos e pobres, e do efeito destrutivo provocado nas comunidades pela transformação das pessoas em bens e das relações sociais em transacções comerciais. As vozes discordantes conseguem citar incessante e perturbadoramente números sobre danos ambientais, pobreza, desperdício e exploração do terceiro mundo. Os factos sobre a horrenda perda anual de área da floresta virgem, as crianças asiáticas que cosem, por uns poucos cêntimos diários, as bolas de futebol com que as nossas próprias crianças brincam e as fomes dos países do terceiro mundo devidas à substituição da agricultura de subsistência por culturas de exportação, são já bem conhecidos. Menos conhecidos são factos como o homem mais rico do México ter mais dinheiro do que os dezassete milhões de seus compatriotas mais pobres todos juntos e os pagamentos anuais das dívidas de muitos países pobres ultrapassarem em muito o que eles podem gastar em saúde e educação. Considerações deste tipo revelam de forma violenta a injustiça e instabilidade da ordem económica mundial, obrigando-nos a perguntar não se deverá esta ser alterada, mas como.

Os defensores do capitalismo de mercado mundial fazem assentar a sua fé em duas coisas: a capacidade que os próprios mercados têm de reparar, no longo prazo, as piores iniquidades e desigualdades que geram, e a “solução técnica”, na qual a inovação tecnológica futura resolverá os problemas criados pelas tecnologia e indústria actuais. Por exemplo: os automóveis e as lâmpadas eléctricas do futuro consumirão menos energia do que os actuais e, portanto, não importa que actualmente estejamos a consumir os nossos recursos combustíveis a uma velocidade que parece insustentável.

Os críticos não se impressionam com estes argumentos. Afirmam que o mercado existe para que aqueles que controlam os recursos possam colher lucros, o que constitui o seu único objectivo e raison d›être. Ao deixar o mundo nas mãos das forças impessoais da oferta e da procura, o mercado ignora as consequências que isso tem naqueles, muitos, que meramente servem os seus interesses, não partilhando os seus lucros. Para alcançar a justiça social, dizem eles, precisamos de uma economia que coloque no seu centro os interesses humanos. Esta economia incorporaria princípios de protecção ambiental e cultural, de justiça económica para indivíduos e povos, e de regulamentação da actividade de empresas multinacionais.

Foram avançadas muitas teorias relativas a uma actividade económica sustentável, e, por conseguinte, mais contida e equilibrada, mas nenhuma deverá ser adoptada enquanto a actual ordem conceder tamanhos lucros a uns e revelar tantos atractivos a outros. Qualquer alteração no sentido de inverter as tendências desenfreadas da ordem contemporânea exigiria alterações substanciais de atitudes e práticas, de forma que é difícil ver como isso poderia acontecer, a menos que alguma catástrofe mundial nos obrigasse a fazê-lo.

Algumas pessoas afirmam que só um regresso às pequenas comunidades autogovernadas oferece alguma esperança de um futuro mais justo e sustentável. Têm em mente a “cultura campesina” regional, auto-sustentada, que tem existido desde os tempos primitivos — combinação social descrita por um historiador como sendo “o maior feito da humanidade”. Mas isto revela a debilidade fatal existente em todos os argumentos deste género: recomendar, como reacção às preocupações genuínas suscitadas pelos piores aspectos do capitalismo de mercado livre, um regresso à vida campesina, ou, na verdade, a qualquer sistema de consumo reduzido, crescimento limitado, estase e contenção, não pode ser encarado como uma opção séria, não apenas por aqueles, relativamente poucos, que retiram benefícios do capitalismo, mas também por aqueles, muito numerosos, que aspiram a juntar-se-lhes.

Os críticos da economia do mundo actual estão sujeitos a ser tendenciosos nas suas críticas, pois há verdadeiramente muito a deplorar nos seus efeitos sobre o mundo natural e social e na sua injustiça chocante. Têm razão, ao dizer que é necessário fazer alguma coisa. Mas, como estas propostas insatisfatórias ilustram, ainda se aguarda a apresentação de uma saída convincente para o dilema.

No entanto, também há aqueles que não só defendem como até enaltecem a ordem do mercado livre e o consumismo que a alimenta. A ortodoxia sociológica afirma que o consumismo equivale a opressão: o marketing habilidoso tem-nos manipulado, diz a ortodoxia, deixando-nos num papel de vítimas passivas, consumindo perpetuamente e sem objectivo quantidades sempre crescentes, a mando de uma indústria publicitária que nos cria falsos desejos, levando-nos a acreditar que comprar um objecto equivale a comprar a felicidade. Os estudos acerca do consumismo e daquilo que ele envolve — marketing, marcas, moda, compras, embalagens, lixo, poluição, rivalidade social, mentalidade do descartável e transformação do valor em bem — constituem uma leitura perturbante porque sugerem que os mecanismos de persuasão e coerção subjacentes ao capitalismo são fundamentalmente malignos.

A ortodoxia diz-nos que os executivos do marketing transformam-nos em criaturas ansiosas mas dóceis, a quem falsamente se faz crer que o caminho para o paraíso passa por comprar coisas. Imensos comentadores distintos — entre eles Thorstein Veblen, John Kenneth Galbraith, Vance Packard, Ralph Nader e os filósofos da Escola de Frankfurt — condenam o desperdício, a sandice, a falsa consciência da sociedade consumista e a sua transformação das pessoas em vítimas, que descrevem como uma conspiração que nos empurra para o trabalho, para podermos comprar as migalhas de prazer que o sistema deixa cair das mesas daqueles cujos produtos desnecessários compramos. E, entretanto, somos inundados de lixo e poluição, enquanto nos sentamos à luz tremeluzente dos anúncios televisivos, comendo os nossos jantares insalubres preparados nos microondas.

Contudo, a informação que apoia esta ortodoxia é ambígua. Outra informação muito diferente indica que os consumidores são inteligentes nas suas escolhas e que as compras constituem uma profunda fonte de significado no mundo moderno. A ortodoxia parece implicar que, se os anunciantes deixassem as pessoas em paz, elas começariam todas a ler Wittgenstein e a ouvir Mahler. Pois bem, não o fariam. Elas querem Coisas, querem Objectos, querem comprar e possuir. E, como sugerem as leis da oferta e da procura, é o consumidor que aponta o caminho, ao passo que os produtores e os anunciantes seguem no seu encalço, oferecendo as consolações e as salvações (a linguagem religiosa vem naturalmente à ideia) que as marcas e as alegrias da propriedade fornecem.

Portanto, talvez o amor pelo consumo manifestado pelos consumidores não seja tão desprezível. Os defensores deste afirmam que consumir é a paixão e a criatividade da vida contemporânea. É através da compra e posse de Coisas, dizem eles, que nos definimos a nós próprios, interpretamos a nossa sociedade e conferimos coerência às nossas vidas. Não desejamos guiar um automóvel, mas sim um Ferrari; não desejamos beber champanhe, mas sim Veuve Clicquot; não desejamos vestir um fato, mas sim um fato Armani. Possuí-los confere-nos significado. A linguagem das marcas, produtos e serviços é a linguagem partilhada da nossa comunidade. Os logótipos e anúncios são os emblemas culturais da nossa época, sinais que nos ajudam a andar pelo mundo e a avaliar aquilo que nele encontramos. Tanto a linguagem como as imagens nos oferecem aquilo que em tempos a religião ofereceu — uma estrutura comum. Mas, enquanto elo comunitário, dizem os seus defensores, é mais democrático e igualitário: os consumidores não são idiotas, não são receptores passivos de dogmas pregados por um clero; são os sacerdotes de si mesmos, sabem o que querem, e estão a obtê-lo.

Consideremos a lógica das marcas. Por que razão as pessoas compram e usam marcas dispendiosamente reconhecíveis? Porque isso lhes permite reclamar uma posição social, prestígio, confiança e faculdade de resolução. Essa é a chave do consumismo: a aquisição dos veículos tangíveis compra precisamente a posse desses intangíveis.

O argumento de que o consumo não constitui opressão — que os consumidores são felizes, que o consumo confere satisfação e dá sentido à vida — é exaltantemente robusto. Mas é difícil não deixar de pensar que, se a felicidade é o que interessa, seria possível alcançar o mesmo grau de felicidade mais rápida e economicamente colocando uma droga adequada nas reservas aquíferas. E deixa de fora uma questão tão familiar que se tornou há muito o lugar-comum dos lugares-comuns: de todas as coisas que vale a pena ter na vida — nomeadamente gentileza, sabedoria e afectos humanos —, nenhuma se encontra à venda nos centros comerciais do mundo.

A. C. Grayling

Retirado do livro O Significado das Coisas, de A. C. Grayling (Gradiva, 2003)

Fonte: http://criticanarede.com/html/capitalismo.html

terça-feira, 24 de novembro de 2009

CARNE DE CACHORRO: POR QUE NÃO?

16/11/2009

Li um texto interessantíssimo no blog de André Forastieri, situado no portal R7. Ele trata da carne de cachorro como alimento e, mais ainda, pergunta se haveria algum crime em seu consumo. Segue trecho:

"Eu comeria cachorro? Fácil. Nunca tive oportunidade, mas se pintar, não recuso. E tem um mundo subterrâneo de comedores de cachorro em Brasil. Ontem, por exemplo, sessenta quilos de carne de cachorro foram apreendidas em Suzano, aqui na grande São Paulo. Um casal pegava os bichos na rua, engordava, abatia e vendida para dois restaurantes aqui do Bom Retiro. O casal e quatro coreanos, responsáveis pelos restaurantes, foram presos. Presos por quê? Qual a acusação? É ilegal comer cachorro no Brasil? Pô, aqui se come buchada de bode, cobra, tartaruga. Na França se come cavalo e escargot. Qual o problema?" (grifos nossos)

Sim, vale repetir as perguntas do blogueiro: QUAL O PROBLEMA? Qual o crime? E vamos aos jornalistas. No mesmo portal R7, da Record, temos uma reportagem, em vídeo, que noticia a prisão do casal envolvido no "abatedouro canino". O crime? Não há informação. O jornalismo, ali, dá vez ao teor sensacionalista (não consegui passar o video pra cá).

Agora, vamos ao G1, da Globo. O portal tenta ser mais técnico, mas faz lambança. Afinal, alegar que o "ilícito" corresponde ao descumprimento de uma Lei Estadual é pisar na bola, já que é prerrogativa exclusiva da União legislar sobre matéria penal (daí a redundância de quando dizem "crime federal" etc.).

De todo modo, dão uma pista: "O casal e os proprietários dos restaurantes vão responder por crime contra a fauna, contra o meio ambiente e por formação de quadrilha. Os restaurantes deverão ser fechados pela Vigilância Sanitária." - vejam o vídeo lá na página, também.

Enfim
O policial diz que serão indiciados por crime de "formação de quadrilha ou bando". Ok. Mas uma quadrilha, para ser configurada como tal, precisa cometer algum crime. QUAL FOI O ILÍCITO COMETIDO?

Aparentemente, serão pegos pela legislação ambiental, com o agravante de prejuízo à saúde pública, nos termos da Lei 9605/98:

"Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal."

Sobre o agravante:

"Art. 6º Para imposição e gradação da penalidade, a autoridade competente observará:

I - a gravidade do fato, tendo em vista os motivos da infração e suas conseqüências para a saúde pública e para o meio ambiente;"

Mas agora vamos supor o seguinte: um abatedouro SEM maus-tratos, sem mutilação (que só pode ser considerada como tal enquanto os animais estiverem vivos) e que respeite TODAS AS NORMAS DE SAÚDE PÚBLICA E MEIO-AMBIENTE. Qual a diferença dele para um abatedouro bovino, suíno, caprino etc.?

Se criarem uma lei para proteger o cão, é preciso que se crie alguma para proteger o boi, o porco, a cabra, o carneiro e todos os demais bichinhos bonitos que os carnívoros devoramos. Ah, sim, nunca comi e provavelmente jamais comerei carne de cachorro. Mas como todas as demais - inclusive peixes e aves (também lindos e fofos) -, de modo que não faz sentido condenar os apreciadores da carne bovina.

Quando se estipula que o ser humano tem a prerrogativa de comer carne, há o seguinte estabelecimento: somos uma espécie privilegiada pela lei, ou seja, podemos comer os outros animais. A exceção legal é feita às espécies em via de extinção.

De resto, há toda sorte de fazendas, abatedouros, frigoríficos e revendedores dos mais variados tipos de carnes. E também animais de estimação servidos como alimento, dos fofinhos aos mais exóticos: coelhos, galinhas, lagartos, cobras, peixinhos etc.

Alguém tem uma explicação lógica para eventual proibição do consumo de carne canina no Brasil? E, estabelecendo-se de forma asseada e obedecendo todos os rigores da vigilância sanitária, um restaurante de carne de cachorro não poderia funcionar? Por quê?

Fonte: http://www.interney.net/blogs/imprensamarrom/

CUIDADO COM ALGUNS DEFENSORES DOS CÃES!

17/11/2009
Eles são exceção à regra, é verdade, mas existem e seguramente todos já devem ter visto ou ao menos sabido de sua existência. Falo aqui dos supostamente "amantes" dos cães, mas cujos comportamentos contradizem o amor alegado. Exemplos não faltam.

Vejam os moradores dos trópicos, mas donos de cães típicos dos países frios, muito frios. Se não for sadismo, é imbecilidade. Como alegam amor, não resta outra: são idiotas. Lembro de ver, em Ubatuba e sob um calor saariano, famílias passeando com cachorros da raça Husky, típica da Sibéria (aquela região bem quentinha e equatorial da Rússia).

E o que não dizer dos proprietários de cães de caça mantidos em ambientes fechados, longe de qualquer atividade parecida com o hábito natural de sua raça? Dar uma voltinha para fazer pipi, convenhamos, é uma demonstração parecida com aquela devotada aos que estão sob prisão perpétua e passam duas ou três horas no pátio da penitenciária para tomar um "solzinho".

Além disso, há casos realmente extremos, de quem mantém num apartamento minúsculo espécimes de raças imensas, como Rottweiler e quejandos. Não adianta fazer cafuné, é mais do que óbvio o desconforto do animal. É evidente sua (dele) serventia para aplacar a carência afetiva do dono e não o amor deste último em relação aos bichos em geral ou mesmo aos cães em especial.

Tudo bobagem.

E então venho aqui repetir uma velha questão: se comem bois e bezerros, porcos e leitões, bodes e cabritos, ovelhas e cordeiros, e até coelhinhos, tudo dentro dos hábitos gastronômicos ocidentais, enfim, por que razão lógica seria PROIBIDO comer carne de cachorro?

São esses os "defensores" dos cães? Essas pessoas estão efetivamente preocupadas com o bem-estar dessa categoria animal?

Não duvido – vale repetir – das boas intenções dos VERDADEIROS defensores dos cães. Sei que eles existem. Mas só dou ouvidos a seus argumentos quando e se também defenderem o fim do abate de todos os demais bichinhos. Não faz o menor sentido protestar contra o hábito oriental de se comer cachorro e degustar um bife de vaca – às vezes, ao mesmo tempo.

Ah, sim: não é "nossa cultura"? Sim, não é. Como o sushi não era, e nem mesmo a pizza. Se for assim, fiquemos com os pratos dos índios, ou no mais das vezes aqueles dos colonizadores de Portugal. Ridículo, né?

E, claro, há mercado. Tanto que os tais abatedouros existem de forma clandestina. Também clandestinamente, existem restaurantes.

O mínimo que precisamos fazer é respeitar essa cultura – mesmo tendo nojo ou repulsa quanto à carne degustada (eu mesmo, por exemplo, tenho nojo de carne de rã). E se for para não aceitar quem se alimenta de carne canina, a lógica deve prevalecer: nada de carne. Nenhuma. Todas as espécies animais seriam proibidas.

Mas, ainda assim, continuo com medo de muitos defensores ardorosos dos cães. Sei que são casos excepcionais, mas não são poucos em números absolutos. Cachorros de países frios aqui no Brasil tropical, animais de caça ou até corrida em espaços impróprios, bichos imensos em pequenos apartamentos.

Isso é gostar? O que eles fazem quando odeiam um animal?

Revisão: Hellen Guareschi

Fonte:http://www.interney.net/blogs/imprensamarrom/

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Texto de apoio: Justiça (turmas de direito)

(gr. ôiKouoaúvri; lat. Justitia; in. Justice, fr. Justice, al. Gerechtigkeit; it. Giustizià). Em geral, a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem. Podem-se distinguir dois significados principais: l: J. como conformidade da conduta a uma norma; 2: J. como eficiência de uma norma (ou de um sistema de normas), entendendo-se por eficiência de uma norma certa capacidade de possibilitar as relações entre os homens. No primeiro significado, esse conceito é empregado para julgar o comportamento humano ou a pessoa humana (esta última, com base em seu comportamento). No segundo significado, é empregado para julgar as normas que regulam o próprio comportamento. A problemática histórica dos dois conceitos, ainda que frequentemente interligada e confundida, é completamente diferente. No primeiro significado, a J. é a conformidade de um comportamento (ou de uma pessoa em seu comportamento) a uma norma; no âmbito deste significado, a polêmica filosófica, jurídica e política versa apenas sobre a natureza da norma que é tomada em exame. Esta pode ser de fato a norma natural, a norma divina ou a norma positiva. Aristóteles diz: "Uma vez que o transgressor da lei é injusto, enquanto é justo quem se conforma à lei, é evidente que tudo aquilo que se conforma à lei é de alguma forma justo: de fato, as coisas estabelecidas pelo poder legislativo conformam-se à lei e dizemos que cada uma delas é justa" (Et. nic, V, 1, 1129 b 11). Neste sentido, segundo Aristóteles, a J. é a virtude integral e perfeita: integral porque compreende todas as outras, perfeita porque quem a possui pode utilizá-la não só em relação a si mesmo, mas também em relação aos outros (Ibid., 1129 b 30). Mas também as duas formas da J. particular que Aristóteles enumera, que são a distributiva (v. DiSTRiBunvo) e a corretiva ou comutativa (v. COMUTATIVO), consistem em conformar-se a normas, mais precisamente às que prescrevem a igualdade entre os méritos e as vantagens ou entre as vantagens e as desvantagens de cada um. A definição de J. feita por Ulpiano, adotada pelos jurisconsultos romanos (Dig., I, 1, 10) como "vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu" é outra maneira de expressar a noção de justiça como conformidade à lei, visto pressupor que o que cabe a cada um já está determinado por uma lei. Kelsen tachou essa definição de tautológica por não conter indicação alguma sobre o que é o "seu" de cada um (.General Theory of Law and State, 1945, I, I, A, c, 2); na realidade, prescreve apenas a conformidade a uma lei ou regra que estabeleça exatamente aquilo que cabe a cada um. A noção de conformidade à lei como definição de J. é uma constante mesmo naqueles que se opõem ao conceito tradicional de justiça. Assim, Hobbes afirma que a J. consiste simplesmente na manutenção dos pactos, e que, portanto, onde não há Estado como poder coercitivo que assegure a manutenção dos pactos, não existe J. nem injustiça (Leviath., I, 15). Mas também neste caso a J. não passa de conformidade a uma regra, mesmo em se tratando de uma regra simplesmente pactuada. Mesmo a interpretação feita por Kant da definição romana reduz a J. ao respeito a uma norma já estabelecida: "Se aquela fórmula fosse traduzida por 'dar a cada um o que é seu', estaria dizendo um absurdo, pois não é possível dar a alguém o que já tem. Para ter sentido deve ser assim expressa: inclui-se numa sociedade em que a cada um possa ser garantido o que é seu contra qualquer outro" (Lex justitiaê) (Met. der Sitten, I, Divisão da doutr. do Dir., A). Por outro lado, também aqueles que não vêem no conceito de J. nada mais além da tentativa de justificar determinado sistema de valores, pretendendo expungi-lo da teoria científica do direito, utilizam ou adaptam a mesma noção de justiça. Kelsen diz: "J. significa a manutenção de uma ordenação positiva mediante sua conscienciosa aplicação. Ela é J. segundo o direito. A proposição segundo a qual o comportamento de um indivíduo é justo ou injusto no sentido de ser jurídico ou antijurídico significa que seu comportamento corresponde ou não à norma jurídica que é pressuposta como válida pelo sujeito judicante por pertencer a uma ordenação jurídica positiva" (General Theory, cit., I, I, A, c, 5, trad. it, p. 14). Esse conceito de J. não está submetido às consequências resultantes das diferenças, mesmo as mais substanciais, entre as doutrinas do direito. Quer se entenda a norma como norma de direito natural, quer como norma moral ou de direito positivo, a J. é sempre considerada conformidade do comportamento à norma. No segundo conceito, a J. não se refere ao comportamento ou à pessoa, mas à norma; expressa a eficiência da norma, sua capacidade de possibilitar as relações humanas. Neste caso, obviamente, o objeto do juízo é a própria norma, e desse ponto de vista as diferentes teorias da J. são os diferentes conceitos do fim em relação ao qual se pretende medir a eficiência da norma como regra para o comportamento intersubjetivo. Platão foi o primeiro a insistir na J. como instrumento. Sócrates pergunta a Trasímaco: "Acreditas por acaso que uma cidade, um exército, um grupo de bandidos ou de ladrões, ou qualquer outro amontoado de pessoas que se ponha de acordo para fazer algo de injusto, poderia chegar a fazer alguma coisa se « os seus integrantes cometessem injustiça uns para com os outros? — Não, de certo, respondeu Trasímaco. — E se não cometessem injustiça, não seria melhor? — Seguramente. — A razão disto, Trasímaco, é que a injustiça dá origem a ódios e lutas entre os homens, enquanto a j. produz acordo e amizade" {Rep., 351 c-d). Neste trecho a J. é desvinculada de qualquer objetivo que tenha valor privilegiado: ela não passa de condição para possibilitar a convivência e a ação conjunta dos homens: condição que vale para qualquer comunidade humana, mesmo para um grupo de bandidos. Da mesma forma, no mito exposto a Protágoras no diálogo homônimo, Platão diz que, enquanto os homens não tiveram a arte da política, que consiste no respeito recíproco e na J., não puderam reunir-se em cidades e eram destruídos pelas feras. "Apesar de ajudá-los a obter alimento, a arte mecânica não lhes era suficiente para combater as feras porque eles não possuíam a arte política, de que faz parte a arte da guerra" (Prot., 322 b-c). Com mais frequência, porém, filósofos e juristas não mediram a J. das leis tomando como referência a sua eficiência geral no que diz respeito às possibilidades de relações humanas, mas a sua eficiência em garantir este ou aquele objetivo considerado fundamental, ou seja, como valor absoluto. Não faltou portanto quem julgasse impossível definir a J. nesse sentido, limitando-se a propor a exigência genérica de que, para ser justa, uma norma deve adequar-se a um sistema de valores qualquer (CH. PERELMAN, De Ia justice, 1945, trad. it., 1959). Todavia, os fins aos quais se recorreu com mais frequência são: d) felicidade; ti) utilidade; c) liberdade; d) paz. d) Foram os filósofos que mais recorreram à felicidade. Aristóteles diz: "As leis promulgadas sobre qualquer coisa visam à utilidade comum a todos ou à utilidade de quem se destaca pela virtude ou por outra forma; desse modo, com uma só expressão definimos como justas as coisas que propiciam ou mantêm a felicidade ou parte dela na comunidade política" (Et. nic., V. 1, 1129 b 4). A identificação do bem comum com a bem-aventurança eterna é um caso particular dessa doutrina (S. TOMÁS, De regimine principum, III, 3). ti) Já na antiguidade (p. ex., para os sofistas e para Carnéades) a J. foi identificada com a utilidade. No mundo moderno, Hume impôs eficazmente esse ponto de vista: "A utilidade e o fim da J. é propiciar a felicidade e a segurança, mantendo a ordem na sociedade" (Inq. Cone. Morais, III, 1). A redução da J. à utilidade, e não à felicidade, tem a característica de eliminar o caráter de fim último ou valor absoluto, levando a considerá-la como solução (às vezes a menos pior) de determinadas situações humanas. É o que pensa Hume, corrigindo nesse aspecto o jusnaturalismo racionalista de Grócio, que à J. atribuía valor absoluto, e às normas que a garantem, absoluta racionalidade, pois para ele "as relações mútuas de sociedade" possibilitadas por tais normas eram fins em si mesmas, porque objeto último de desejo (De jure belli aepacis, Intr., § 16). c) Foi Kant quem identificou J. e liberdade. "A tarefa suprema da natureza em relação à espécie humana" é uma sociedade em que a liberdade sob leis externas esteja unida, no mais alto grau possível, a um poder irresistível, o que é uma constituição civil perfeitamente justa (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, 1784, Tese V). Segundo esse ponto de vista, o iluminismo é a condição que derivará da progressiva eliminação dos obstáculos opostos à liberdade da espécie humana (Jbid., Tese VIII). d) Por fim, além da felicidade, da utilidade e da liberdade, os filósofos tomaram frequentemente a paz como medida ou critério da J. de uma ordenação normativa. Esse parâmetro foi introduzido por Hobbes: para ele, é justa a ordenação que garanta a paz, afastando os homens do estado de guerra de todos contra todos, em que vivem no "estado natural". De fato, para Hobbes a primeira lei da natureza, a primeira das normas que permite afastar o homem do estado de guerra é a que prescreve perseguir a paz. "Para a igualdade de forças e de todas as outras faculdades humanas, os homens que vivem no estado natural, isto é, no estado de guerra, não podem pretender que sua conservação seja duradoura. Por isso, tender para a paz enquanto brilhar alguma esperança de obtê-la, e só recorrer à guerra quando isso não for possível, é o primeiro ditame da boa razão, a primeira lei da natureza" (De eive, I, § 15). No séc. XX, Kelsen contrapôs à J. como "ideal irracional" a paz como medida empírica da eficiência das leis: "Uma teoria pode fazer uma afirmação com base na experiência: só uma ordenação jurídica que não satisfaça aos interesses de uns em detrimento de outros, mas que chegue a uma conciliação entre os interesses opostos, que reduza ao mínimo seus possíveis atritos, pode contar com uma existência relativamente duradoura. Só uma ordenação dessa espécie estará em condições de assegurar a paz social em bases relativamente permanentes a todos os que se lhe submetem. Embora o ideal de J. em seu significado originário seja totalmente diferente do ideal de paz, existe nítida tendência a identificar os dois ideais ou ao menos a substituir o ideal de J. pelo de paz" {General Theory, cit., I, I, A, c, 4; trad. it., p. 14). Essa tendência, partilhada por muitos que julgam irrealizável o ideal de J. como felicidade ou liberdade, tende a julgar a eficiência das normas com base em sua funcionalidade negativa, ou seja, em sua capacidade de evitar conflitos. Sem dúvida, conforma-se mais ao espírito positivo de uma teoria do direito que pretenda ter como objeto nada mais do que a técnica da coexistência humana. Mas na realidade o jusnaturalismo moderno, a partir de Grócio, já havia alcançado, pelo menos nesse aspecto, uma generalização maior, exigindo que as normas do direito natural servissem tanto para a paz quanto para a guerra, e que pudessem, pelo menos em parte, valer para qualquer condição ou situação humana. Portanto, do ponto de vista da teoria geral do direito, mesmo a paz pode mostrar-se como objetivo restrito demais para julgar da eficiência (isto é, da J.) das normas do direito. A guerra, assim como os conflitos individuais e sociais, as competições, etc, constituem situações humanas recorrentes, mesmo que indesejáveis; portanto, um juízo objetivo e sem preconceitos sobre as normas de direito deve medir sua eficiência também com relação a tais situações e às possibilidades de superá-las. Na realidade, é possível aduzir apenas dois critérios como fundamento de um juízo objetivo sobre ordenações normativas, visto que só eles valem não como fins, absolutos ou relativos, mas como condições de validade de uma ordenação qualquer. O primeiro, já bastante conhecido na tradição filosófica, é o de igualdade como reciprocidade, segundo o qual cada um deve esperar dos outros tanto quanto os outros esperam dele. Na maioria das vezes em que a tradição filosófica definiu a J. como igualdade (o que fez com frequência a partir dos pitagóricos), pretendeu ressaltar esse mesmo caráter da J., o de reciprocidade (cf. p. ex., HOBBES, Leviath., I. 14; De eive, III, § 6). O segundo critério pode ser deduzido do caráter fundamental que garante a validade do saber científico no mundo moderno: a autocorrigibilidade. Assim como o conhecimento científico se define como tal só quando organizado com vistas à sua própria verificação e, portanto, à sua autocorrigibilidade, também uma ordenação normativa define-se como tal (ou seja, consegue ser eficiente como ordenação) só quando é organizada com vistas à sua eventual autocorreção. Os dois critérios citados, com as variações devidas, também podem integrar-se. Podem conferir à palavra J. um significado tão distante do ideal transcendente e da aspiração sentimental quanto da justificação interessada das ordenações em vigor. Não se deve esquecer também que a mais eficaz e radical defesa de determinada ordenação ne varietur não foi feita pela demonstração, ou tentativa de demonstração da J. de tal ordenação, mas simplesmente ignorando-se e eliminando-se a própria noção de justiça. De fato, é isso o que acontece na filosofia do direito de Hegel, que considera o Estado como Deus realizado no mundo e nega até a possibilidade de discutir a ordenação jurídica sob qualquer aspecto. Hegel dizia: "O direito é algo sagrado em geral porque é a existência do Conceito Absoluto" (Fil. do dir., § 30). O emprego do conceito de J. no segundo significado é o exercício do juízo, que deve ser possível para todos os homens livres, sobre as ordenações normativas que os regem. Que hoje esse juízo não pode ser exercido com base em noções tautológicas ou ideais quiméricos é fato reconhecido. Mas também é fato que ele pode e deve tornar-se objeto de uma disciplina específica que o torne positivo e o mais rigoroso possível, sem subtraí-lo às suas condições empíricas. Desse forma, o conceito de J. ainda pode reassumir a função que sempre teve: a de instrumento de reivindicação e de libertação. Para a distinção das várias espécies de J., v. os verbetes: ATRIBUTIVA, JUSTIÇA; COMUTATIVO; DISTRIBUTTVO.

Fonte:Abbagnano, Nicola: Dicionário de FIlosofia.São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Texto de apoio: Cristianismo: moral e crenças

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Texto de apoio para a prova: MAX WEBER: A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO

Publicado no Caderno de Programas e Leituras Jornal da Tarde – O ESTADO DE S. PAULO 05/11/1983
Julien Freund
Desde a sua publicação, em 1904, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber, provocou enorme controvérsia, que ainda não se encerrou. Poucos livros, na nascente literatura sociológica, foram tão debatidos quanto esse, não apenas pelos sociólogos, mas também por historiadores e teólogos. Não é este o lugar para, como já fiz em outro texto, entrar no pormenor das interpretações e críticas que se opõem e contradizem, cada vez com a certeza de refutar o próprio Max Weber ou algum de seus comentaristas. Também não cabe fazer aqui o inventário dessa controvérsia. A este respeito, porém, gostaria de tecer uma observação geral acerca da impressão que me ficou do incalculável número de condenações suscitadas pelo livro de Weber: deixa-me simplesmente estupefato a maneira como certas pessoas lêem um autor com tantos parti-pris e às vezes simples má fé, até mesmo nos meios científicos e universitários.
Alguns conservam apenas certas passagens da obra e ignoram o resto, fundando assim a sua interpretação numa leitura truncada; outros simplesmente desconhecem o que Weber disse e repetiu para que lhe imputassem uma tese que ele explicitamente recusou; ainda outros fazem intervir acontecimentos que são estranhos ao próprio tema de Weber; finalmente, há quem lhe atribua a vontade de demolir o marxismo, quando ele declara exatamente o contrário. Só podemos lamentar que haja críticos que acreditam dar cabo de um autor selecionando apenas algumas de suas páginas, ou retendo somente as que possam servir ao seu parti-pris. Não pretendo absolutamente defender Weber contra tudo e todos, pois aconteceu que ele se enganasse e cultivasse certos mal-entendidos. Não está imune às críticas. Por sinal, pecaria contra a probidade intelectual quem transformasse o pensamento de um autor num certo número de dogmas intocáveis, como alguns marxistas fazem da obra de Marx.
Weber abriu os flancos, por sua falta, a algumas falsas interpretações, a começar já belas ambigüidades no título de seu livro. Por um lado, ele não examina o capitalismo propriamente dito, mas o espírito do capitalismo. Com efeito, não efetua uma análise, econômica deste sistema mas se esforça por apreender e explicar às concepções éticas e religiosas dos homens que promoveram o capitalismo moderno. Chega mesmo a dedicar longas páginas à definição do que se deve entender por "espírito do capitalismo", num sentido próximo da sua teoria epistemológica do tipo ideal. Ademais, não se interessa por todas às formas do capitalismo, mas unicamente pelo capitalismo moderno de empresa, que surgiu no final do século XVII e no começo do XVIII. Portanto, exclui as formas rudimentares ao capitalismo nas outras partes do mundo, por exemplo na China, assim como o capitalismo bancário do fim da Idade Média ou da Renascença italiana, o dos Pügger ou dos Médicis. Elimina igualmente as formas que este capitalismo pôde assumir no período.. contemporâneo, no correr do século XIX. O seu campo de investigação assim fica perfeitamente delimitado, é o das origens do capitalismo de empresa no espaço ocidental dos séculos XVII e XVIII.
Mas o título versa sobre o protestantismo, sem outra menção. Pode assim dar a entender que tratará do protestantismo em geral. Ora, a leitura do livro mostra que ele se prende a investigarão comportamento de certos protestantes, especialmente dos calvinistas. Uma vez mais, delimita nitidamente seu campo de investigação. O que examina não é, absolutamente, a doutrina do próprio Calvíno, nem mesmo a de todos os calvinistas, porém unicamente a atitude de um ramo do.calvinismo,_a dos puritanos e.r batistas, assim como a_ de algumas seitas. Além disso, não considera todos os puritanos, mas apenas os que se lançaram na aventura do capitalismo, nascente. Finalmente, circunscreve no tempo a sua investigação, pois trata de pessoas que viveram mais de um século e melo após Calvino. que por isso deram ao calvinismo originário uma nova inflexão. Uma coisa está clara: o luteranismo parece descartado dás preocupações de Weber.
Origens do capitalismo
E no entanto Lutero representa, indiretamente, um papel na análise weberiana. Até merece um longo parágrafo na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Mais uma vez, convém fixar o campo da investigação de Weber. Os luteranos, enquanto pertencem à Confissão de Augsburgo, não entram na sua problemática, pois foi irrisório, o seu papel no nascimento do capitalismo moderno. Em compensação, porém, o próprio Lutero formulou um conceito, o de Beruf (1), determinante para todas as igrejas protestantes, que também os calvinistas e puritanos herdaram. Deste ponto de vista, o título da obra, que se refere à ética protestante em geral, não é tão equívoco quanto alguns pretendem. Para dar clareza ao debate, já de entrada, assim se pode caracterizar o terreno de investigação de Weber: ele não faz entrar em conta a doutrina pessoal elaborada pelo próprio Calvino, mas a prática dos calvinistas posteriores a ele; em compensação, deixa de lado a doutrina posterior dos luteranos, para incluir a doutrina pessoal elaborada por Lutero.
Depois de assim delimitarmos com a maior precisão possível o terreno no qual se situa Max Weber, devemos, para a adequada compreensão do papel de Lutero na análise weberiana, definir da maneira mais distinta possível o projeto do autor na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Com efeito, não poderemos interpretar opapel que Weber atribui a Lutero no nascimento do capitalismo moderno se não elucidarmos, previamente, a perspectiva de conjunto na qual ele se inscreve. Isto me parece ainda mais indispensável porque numerosos críticos do pensamento de Weber ou negligenciaram tal aspecto, o que explica alguns de seus contra-sensos, ou o interpretaram mal, deixando de se referir às passagens em que evoca a doutrina de Lutero.
Fique claro que não é meu objetivo, aqui, controlar se é correta ou não a interpretação que Weber propõe de Lutero. Esta questão fica para os teólogos, e é provável que não selam todos da mesma opinião. Tudo o que penso fazer é expor tão exatamente quanto possível a maneira pela qual Weber compreendeu (pouco importando eventuais erros teológicos) o papel de Lutero na sua análise da origem do capitalismo moderno.
A Reforma introduziu uma nova forma de conceber a economia (alguns de cujos aspectos, é verdade, já estavam em gestação nos séculos anteriores), cuja importância os próprios protestantes não perceberam imediatamente, mas apenas pouco a pouco, na trilha das modificações que os puritanos introduziram no calvlnismo primitivo. Esta nova forma econômica é a que chamamos, hoje, capitalismo. Ela, porém, não estava inscrita no protestantismo originário de Lutero ou Calvino, só tomando corpo entre os protestantes ulteriores, que à sua maneira aplicaram os preceitos destes dois reformadores. O engenho da análise de Weber está em mostrar, fundando-se em textos de época, que esta introdução do capitalismo não obedeceu inicialmente a uma motivação econômica, porém religiosa. Em outras palavras, o desenvolvimento da economia não depende necessariamente de transformações internas a ela, mas estas podem ter uma fonte externa; ou ainda, a economia não se explica unicamente pela economia. 1
Com efeito, não devemos esquecer que naqueles tempos o império da religião era predominante, a descrença constituindo uma raridade. A religião, profundamente vivida naquela época, não determinou apenas a ética mas também a conduta prática da vida em todos os domínios, inclusive — naturalmente — no da economia.
O projeto de Weber
A novidade introduzida pela Reforma, em particular na sua versão calvinista, dizia respeito ao ascetismo. Esta atitude foi familiar aos cristãos em todos os tempos, mas na Idade Média era reservada a uma elite religiosa, a dos monges. Graças à Reforma passará a governar o comportamento cotidiano de todo crente que aderiu à nova crença. É a passagem do que Weber denomina a ascese extramundana (dos monges que fugiam do mundo para se entregarem à prece e à contemplação) à ascese intramundana, enquanto prática da vida ordinária dos homens que trabalham neste mundo. Esta passagem também recebe de Weber o nome de "secularização" do ascetismo, que o humanista Sebastíen Franck (a quem Weber cita) traduzia nesta forma típica: a Reforma significa que, no futuro, todo cristão deverá ser monge a vida toda. Foi, se quisermos, uma espécie de democratização do ascetismo, que até então era prerrogativa da aristocracia religiosa dos conventos. Já compreendemos, então, uma das razões para inexistirem mosteiros entre os protestantes.
O processo descrito por Weber é o seguinte: a ascese dos puritanos na sua vida individual e familiar opunha-se ao consumo da mais-valia. O que fazer do capital assim poupado e acumulado, do qual não se gozava pessoalmente? Dar-lhe um uso produtivo no próprio empreendimento a fim de fazê-lo crescer, sendo este crescimento racionalmente programado (2). Uma questão se coloca: terá sido Weber o primeiro a fazer esta análise? Algumas indicações sumárias neste sentido encontram-se em P. Engels, mas o próprio Weber refere-se explicitamente a Eduard Bernstein, o autor socialista e marxista que ficou conhecido como "o pai do revisionismo". Weber tinha relações de amizade com ele e reconhece que Bernsteirl lhe teria fornecido uma parte da literatura que serviu de base a esta obra. Contudo, se Bernstein captou bem o mecanismo da acumulação de capital, Weber considera que não percebeu o outro aspecto, o da racionalização da vida econômica graças à ascese. Procuremos agora recapitular as diferentes fases da demonstração weberiana.

A racionalização
Sabe-se que a crescente racionalização da vida é um dos temas centrais do pensamento sociológico de Max Weber. O capitalismo introduziu essa racionalização na vida econômica. Contudo, as primícias desse processo já se encontravam na Idade Média, e precisamente no contexto religioso. Observemos, porém, que para Weber o conceito de racionalidade não é inteiramente unívoco, pois contém "um mundo de oposições". Além disso, a vida pode ser racionalizada em função de objetivos extremamente diversos e segundo direções extremamente distintas. Uma destas direções foi a tomada pela ascese na vida religiosa, particularmente desenvolvida nos mosteiros. Evidentemente, os .monges nem sequer pensavam em racionalizar a vida econômica, da qual se desinteressavam devido a seu voto de pobreza, mas tentaram racionalizar a sua vida mesma, na sua globalidade; a melhor ilustração disso é a introdução de uma regra, que desde São Bento faz parte da constituição de uma ordem. Essa é, mesmo, a diferença essencial entre o monarquismo oriental e o ocidental
O monarquismo oriental obedeceu a uma tendência mais anárquica. É verdade que os candidatos a esse tipo de vida renunciavam ao mundo, mas geralmente preferiam a vida arbitrária do eremita, entregando-se a uma vida religiosa de virtuose que escolhia ele próprio, a seu critério, as mortificações e até algumas torturas. O monarquismo ocidental, ao contrário, está ligado a uma condução metódica da vida. fundada numa regra comum, exigindo portanto no interior do convento uma disciplina que rode até culminar na rigidez militar dos jesuítas. O ascetismo consistia neste caso em um controle ativo e racional da vontade, tendo em vista liberar o homem do jugo dos instintos e das paixões, enquadrando -o numa regulamentação precisa de exercícios e devoções que pontuavam todas as horas do dia.
Essa racionalização pela ascese foi herdada por alguns meios protestantes. Foi sempre estranha aos luteranos, e não foi aceita por todos os calvinistas. Foram principalmente os puritanos que a integraram em seu estilo de vida, a ponto de serem comparados, às vezes com os franciscanos descalços. Por sinal, um enviado de Gênova à Inglaterra. Fieschl,observou num relatório que o exército de Cromwell lhe dava a impressão de um capítulo de monges. Contudo, na transposição do ascetismo produziu-se uma importante modificação, que já indicamos. Ela é fundamental para compreendermos o pensamento de Weber. A ascese era praticada pelos monges no quadro de uma vida longe do mundo (ausserweltliche Moenchsaskese) enquanto o do puritano permanecia diretamente ligada à ação do mundo, e particularmente ao exercício da profissão que incumbia a cada homem (innerweltliche Berufsaskese) (3). Lutero abria espaço para a espontaneidade na existência -e para o impulso do sentimento ingênuo, ao passo que, segundo os puritanos, a vida inteira devia ser moldada de maneira sistematicamente racional. Compreende-se, assim, que nas cortes dos príncipes protestantes luteranos fossem tolerados a bebida e até mesmo costumes grosseiros. Numa família calvinísta puritana, ao contrário, tais comportamentos viam-se totalmente excluídos: o rigor pessoal de cada um repercutia no conjunto da família (no sentido amplo), até comprimir toda emoção ou, pelo menos, não a deixar transparecer. Tem cabimento supor que Max Weber fosse particularmente sensível a este contraste interno ao protestantismo, não apenas por ser ele alemão e protestante, mas também por ter nascido numa família de reformados,, numa Alemanha de maioria luterana. Às vezes me pergunto se um reformado francês poderia ter a intuição de escrever uma obra como Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Os puritana em questão são, portanto, antes de mais nada crentes que procuram harmonizar sua vida cotidiana com suas convicções religiosas, o que os leva a uma conduta rigorista do ponto de vista moral. Sem dúvida, como Max Weber não põe dificuldade em reconhecer, o sociólogo poderia limitar-se a analisar o seu comportamento ético e prático e negligenciar os seus fundamentos dogmáticos. Uma tal divisão, contudo, obstaria a compreensão do comportamento dos puritanos e sobretudo das conseqüências deste. Com efeito, as convicções
religiosas são determinantes no estilo que inauguraram na economia.
A economia puritana
A vida do puritano não tem sua significação em si própria, nos seus próprios interesses, porém na glória de Deus. O mundo não existe por si mesmo, mas porque foi criado por Deus, ad majorem Dei gloriam. Este é o artigo fundamental da sua fé: é o homem que existe para Deus, e não o inverso. Essa glorificação da majestade divina não consiste apenas nas manifestações ocasionais de culto, mas principalmente nos atos de todos os dias. inclusive—e acima de tudo — no exercício da profissão. A piedade, no sentido de devoção, é vazia quando se limita a atos pios, pois permanece estritamente individual, e portanto submetida à emoção pessoal. Ora, a salvação da alma não depende do fiel, mas apenas de Deus, que dele faz um vaso de eleição, ou não. Aqui se reconhece, em linhas gerais, a doutrina da predestinação de Calvino, segundo a qual unicamente Deus decide quem será salvo ou não. O crente não pode penetrar os segredos de Deus, menos ainda influir na sua vontade. Nenhum sacramento, cerimônia, emoção ou superstição podem ajudar-nos a adivinhar os decretos divinos. A conseqüência é um desencantamento do mundo, condição para racionalizar-se a vida. Contudo, a doutrina calvinísta da predestinação periga lançar o fiel na incerteza, pois ele não salva a si próprio, em princípio, por mais que faça. A doutrina católica do perdão e do arrependimento é inteiramente oposta. Apesar de haver pecado, o fiel católico pode resgatar-se pela confissão, dispondo o padre do poder das chaves, e no imaginário popular até pode de certa forma comprar a sua salvação, acumulando durante a existência boas obras que serão contabilizadas no dia da sua morte. A absolvição católica, no fundo, é uma consolação.
A predestinação, ao contrário, expunha o calvinista a uma tensão interna, uma vez que o seu destino está fixado prévia e independentemente dele, tensão que pode converter-se em angústia. Os pastores, que estavam em contato imediato com os tormentos que essa doutrina pode gerar, foram obrigados a formular certos compromissos para poderem reagir eficazmente à angústia que a incerteza quanto à salvação podia suscitar. Fizeram-no de duas maneiras. Por um lado, ensinavam que considerar-se eleito por Deus é um dever. Assim se esconjurava a angústia causada pela incerteza acerca da eleição divina. Aos olhos desta pastoral, manifestar alguma dúvida a respeito até passava como tentação pelo demônio ou, pelo menos, como sinal de fé insuficiente. Contudo, como sublinhava o pregador puritano Bunyan, bastava um pecado para arruinar toda essa certeza. Mas existem sinais que permitem ao fiel adquirir a certeza da sua eleição; deles, o principal era o sucesso no seu ofício. Em outras palavras, o êxito profissional tornava-se uma confirmação (Bewaehrung) da salvação, isto é, da inclusão na categoria dos eleitos. Com efeito, esse sinal indicava que Deus age em nós para sua maior glória.
Com isso, um certo número de controvérsias, a que nos referimos inicialmente, perde sentido. Weber trata não propriamente da teologia de Calvino, mas da pastoral dos ministros da religião — como Baxter, Bailey, Hoornbeek e outros. Em várias ocasiões nos adverte contra qualquer confusão a respeito (4). Se volto rapidamente a esse aspecto do pensamento weberiano é porque tenho a esperança de que os comentaristas se decidirão a ler a sua obra em vez de escutar em os seus preconceitos ou prevenções Também gostaria de insistir em outro ponto. Weber indica que os primeiros empresários eram artesãos que, prosperando, empregaram outros artesãos, seus antigos companheiros de trabalho que freqüentavam o mesmo templo, à medida que suas fábricas se expandiam. Quer dizer que, nessa época primitiva do capitalismo, empresários e operários saiam da mesma camada social, ainda mais porque recebiam juntos o mesmo ensinamento do mesmo pastor, de modo que eram animados pela mesma convicção acerca do trabalho para maior glória de Deus. É desse enfoque que a idéia da "origem de capitalismo" alcança todo o seu sentido. O que Max Weber descreve é o capitalismo primeiro, o dos iniciadores, e não o subseqüente, marcado pela separação social entre empresários e operários (5).
Divergindo da doutrina de Calvino em vários pontos, essa pastoral introduziu modificações na maneira como se recebiam os princípios da teologia do genebrino. Essas modificações produziram diversos resultados, tanto no plano da teologia quanto no da ética e, finalmente, no da economia, desde que a maneira de conceber o trabalho influencia a economia.
A ascese como vocação
Antes de mais nada, mas de maneira sucinta, as conseqüências teológicas. O puritanismo afastou-se da desconfiança do protestantismo primitivo quanto à santíficação pelas obras. Sabe-se que, devido à sua doutrina da sola fides (6), Lutero atribuiu às boas obras um papel secundário. Calvino foi menos categórico, porém considerava que o valor de tais obras aos olhos de Deus é uma incógnita para o homem. Contudo, desde que o sucesso no trabalho se tornava sinal de eleição e que os frutos deste trabalho permitiam organizar melhor o regime social, concebido também como uma glorificação de Deus, era natural que a pastoral puritana devesse encontrar a idéia da santificação pelas obras, assim se aproximando do catolicismo. Contudo, permanece importante a diferença entre as duas versões. Essa santificação para o católico continua sendo uma
sucessão de atos isolados, que ele executa ao sabor das circunstâncias e das ocasiões. Para o puritano, ao contrário, é a vida inteira que deve ser erigida no sistema de uma boa obra, significando ademais que Deus não ama os homens sem razão. A seus olhos, portanto, não se trata mais de acumular atos discricionários, mas de seguir um método que faça da própria vida um conjunto coerente e racional, fundado numa disciplina permanente da conduta. Em segundo lugar, se o puritano não é juiz de sua salvação, torna-se porém juiz da certeza de sua eleição. Disso resulta que se considera capaz de "controlar" o seu próprio estado de graça. "Da mesma forma, escreve Weber, que controlava a sua própria conduta, o puritano das gerações posteriores controlava o comportamento de Deus, cujo dedo enxergava em cada pormenor de sua vida. Contrariamente â doutrina autêntica de Calvino, sempre sabia por que Deus tomava tal ou qual disposição" (7) Era essa atitude, feita de tanta segurança, que irritava os adversários ou contestadores do puritanismo. Como quer que fosse, essa vigilância constante dava lugar a uma espécie de contabilidade moral, sob a forma por exemplo de diários íntimos, que relatavam o progresso do fiel no caminho das virtudes e da graça, a exemplo das estatísticas morais de Benjamim Franklin.
No plano ético, a conseqüência foi o rigorismo da ascese puritana, cuja origem se encontra precisamente nas crenças e práticas religiosas. Weber reconhece que outros autores já abordaram esse tema, e situa a sua originalidade no evidenciamento do caráter racional desse tipo de ascetismo. Ele é igualmente governado pela preocupação de glorificar a majestade de Deus. A ascese calvinista reside essencialmente na labuta, no "trabalho sem descanso em seu ofício". A atividade temporal assim se torna caução e confirmação da eleição espiritual, graças à disciplina imposta pelo trabalho. Weber precisa, contudo, que essa disciplina não deve ser comparada à dos jesuítas, porque estes nunca estabeleceram ligação intrínseca entre a atividade temporal e a certeza da salvação. No fundo, este ascetismo deixa-se resumir na fórmula: "Deus ajuda a quem se ajuda" (8).
No que consiste a racionalidade deste ascetismo? Negativamente, significa o recalcamento da subjetividade do sentimento e da efusão religiosa, assim como a impersonalidade da prescrição ética. O puritano não trabalha para si mesmo, para o gozo que possa ter, mas para maior glória de Deus. Daí a necessidade de controlar seus impulsos, suas emoções, desejos e ímpetos. Todavia, tal atitude não exclui a satisfação do indivíduo, que porém só pode consistir na certeza da salvação. Para tanto Baxter chega a recomendar que nos guardemos de toda
expansão na amizade, que desconfiemos de todo ardor na ajuda ao outro ou na solidariedade. Spangenberg pretende seguir o versículo do profeta Jeremias: "Desgraçado o homem que confia no homem". O puritano não deve ter outro confidente além de Deus. Assim, o calvinismo não conhece tensão, como a kierkegaardiana, entre o indivíduo e a moral. Como o trabalho é o meio para glorificar a Deus, perde toda conotação pessoal. Nestas condições se compreende que o puritano se mostre hostil à contemplação e à mística, pois são elas formas de ociosidade que favorecem a efusão irracional, e também ao quietismo, que encoraja a fuga para fora do mundo, no sentido da ascese extra-mundana. O místico entende estar em comunicação com Deus (9), enquanto o puritano, ao contrário, se considera apenas como o instrumento de Deus que está destinados a glorificar, por melo do seu trabalho, a cria
ção: não passa de administrador dos bens
adquiridos por seu trabalho.
Positivamente, esta atitude é racionalizadora em seu metodismo, que introduz a coerência entre a fé e a atividade temporal entre o dogma e a prática. Todo ato assim se inscreve na lógica do anterior; e o conjunto dos atos, num sistema global da vida. Tal coerência só é possível sob a condição de que o crente não tome posse ele próprio dos frutos do seu trabalho, isto é, que não se faça de dono a gozá-los. Com efeito, este último comportamento conduziria, a longo prazo, ao ócio e às tentações da carne, ao desperdício das capacidades que Deus concedeu ao homem para que este O glorifique. O principal pecado consiste justamente em desperdiçar o tempo, o que significa, gastá-lo em outras coisas, dedicar-se a ações inúteis e imorais. Por conseguinte os pregadores puritanos não condenavam apenas o luxo ou a preguiça mas também.a exemplo de Baxter ou Sanford, a vã tagarelice e até mesmo os transportes amorosos no seio do casamento A acumulação da riqueza não é proibida se ela resulta do trabalho, pois o que se condena não é a aquisição racional de bens, mas o seu uso irracional. Isso quer dizer que a riqueza não libera o indivíduo do imperativo de trabalhar, pois ambos são modos de glorificar a Deus, ainda mais por ser o lucro sinal de eleição. "Trabalhai então para serdes ricos para Deus, declarava Baxter, não para a carne e o pecado." E Weber assim comenta este comportamento: "Aquele que sabe, melhor que o seu próximo, empregar para a glória de Deus o que possui não está absolutamente obrigado por amor ao próximo a repartir seu bem com ele" (10).
Pobreza e lucro
Está evidente que tal Berufsaskese pelo trabalho entra em contradição com o ascetismo da pobreza, sobretudo o dos monges que fazem voto neste sentido. Sem dúvida, há no mundo os que são pobres por condição. O puritanismo os aconselha a serem capazes de suportar o seu estado. Em contrapartida, rejeita como "doença" o fato de se forçar à pobreza e de felicitar-se ou glorificar-se por ela. O homem não tem de glorificar a si próprio, mas somente a Deus. Por mais forte razão, os puritanos recusam a mendicância.
Esta ética ascética do trabalho não podia deixar de repercutir tanto no consumo dos bens quanto na sua produção. A parábola do servidor despedido porque não fizera frutificar a moeda que seu senhor lhe confiara servírá de justificativa para a busca do lucro, que passa não apenas por permitido, mas ainda por um dever ético e religioso. "Se este Deus, escreve Weber, que o puritano vê agindo em todas as circunstâncias da vida, mostra a um de seus eleitos uma ocasião de lucro, é de propósito. Portanto, o bom cristão deve responder a este apelo." (11) Deste ponto de vista, o puritanismo produziu uma ruptura na mentalidade tradicional que nem Lutero nem Calvíno chegaram realmente a reprovar: suprimiu a desconfiança face ao desejo de aquisição e da crematística. A partir de agora o lucro deve ser considerado como desejado por Deus, sob a condição de não o convertermos em objeto de gozo. Gomo bom administrador da fortuna desejada por Deus, o empresário deve empregá-la para fins úteis, que serão diversas maneiras de glorificar a Deus. Em outras palavras, o novo estilo teve um duplo efeito: econômico e social.
O efeito econômico foi o que recebe maior ênfase por parte dos intérpretes de Weber: não se podendo valer dos produtos do seu trabalho a título de possuidor a gozá-los, o puritano investiu o lucro no seu negócio, para desenvolvê-lo como bom intendente do seu único dono, a saber, Deus. A audácia do projeto de Weber consiste, portanto, em mostrar-nos que o novo desenvolvimento econômico não obedeceu a motivos puramente econômicos, mas também a motivações religiosas e éticas. Em outras palavras: sinal da bênção divina, a economia se tornará também bênção para os homens, no sentido de uma economia da abundância.; Contudo, Weber detém-se apenas no primeiro aspecto, salvo para notar que esta concepção puritana "velou no seu berço o homo economicus moderno" (12). Evidentemente, dada a natureza humana, era de se esperar que se desviassem as intenções dos primeiros empresários puritanos. Disso tinha perfeita consciência o metodista Wesley, promotor do revival: perguntava se o aumento das riquezas e bens não acarretaria, inversamente, uma debilitação da religião. Não Obstante, declarava: "Não impeçamos os homens de serem diligentes e frugais. Exortemos todos os cristãos a ganharem e a pouparem o que puderem, em outras palavras, a se enriquecerem". Mas, ao mesmo tempo, recomendava aos seus fiéis que dessem sob outras formas o que tivessem adquirido. Preconiza, portanto, uma racionalização sociai a partir da racionalização econômica. Porém, observa Weber, um tal projeto era estranho a Lutero, fiel à indiferença paulina, pois, ainda que timidamente, implicava uma reforma social.
Raros comentaristas de Weber perceberam que ele credita aos primeiros empresários puritanos a iniciativa do que chamamos de questão social, por sinal num sentido utilitarista que os economistas liberais vulgarizarão mais tarde. Não é o menor dos paradoxos que a conduta rigorista e ascética dos puritanos tenha sido uma das fontes do utilitarismo. O fato de contribuir para uma organização melhor da sociedade constituía, aos olhos destes pioneiros, uma outra maneira de celebrar a glória de Deus, criador do mundo mas também da ordem social. Esta obra respondia, ao mesmo tempo, à impersonalidade da racionalização puritana, no sentido de que o crescimento econômico era posto a serviço da utilidade social geral, portanto impessoal. Inscrevia-se no sistema dos comportamentos metódicos que se diferenciavam da fragmentação das boas obras do catolicismo (esmola, dom, etc.) em atos isolados. Weber considera sintomático que os pregadores puritanos tenham substituído, nas suas justificações, a simbólica jurídica tradicional pela simbólica comercial, concebendo a sua pastoral segundo os procedimentos "de uma exploração comercial" (13). Baxter, por exemplo/explicava a invisibilidade de Deus através da imagem do comerciante que trata por correspondência, com um estranho a quem nunca viu. O mesmo pregador insistia nas virtudes da divisão do trabalho, com uma eloqüência que as vezes faz pensar na de Adam Smith, porque ela condiciona uma produção quantitativa e qualitativamente superior, em proveito do bem geral, isto é, do bem impessoal do maior número. Recorria, portanto, à motivação utilitária.
Esta maneira de ver dos pregadores inspirou a conduta de todos os seus fiéis, tanto dos operários quanto dos empresários. Para uns e outros, o labor industrioso constituía um dever face a Deus. A religião do trabalho terminou determinando o comportamento de todos; os sindicatos a herdarão no século XIX. É toda imagem do trabalho que desde então se vê modificada. Com efeito, a indústria moderna, apesar das lutas que gerou, só foi possível a partir da concordância inicial no piano religioso, entre operários e empresários. As duas categorias participavam igualmente da. "edificação do cosmos prodigioso da ordem econômica moderna" (14)

Weber insiste no fato de que esta mentalidade foi unicamente a dos agentes (operários como empresários) do capitalismo primitivo, pois, posteriormente,’ mudaram as coisas, devido ao declínio das convicções religiosas. Mais tarde, com efeito, "o ardor pela busca do reino de Deus começava a diluir-se gradualmente na fria virtude profissional; a raiz religiosa definhava, cedendo lugar à secularização utilitária" (15) E Weber acrescenta: "Hoje o espírito do ascetismo religioso escapou da gaiola — definitiva mente? Quem poderia saber… Seja como for, o capitalismo vencedor não precisa mais deste apoio, desde que repousa numa base mecânica" (16). Mas é inegável que um dos elementos fundadores do espírito do capitalismo moderno foi este empenho numa conduta metódica e rigorosa, por razoes religiosas, e que por isso mesmo foi também uma das fontes da civilização moderna. Gostaria de insistir nesta conclusão de Weber, pois ela pouparia numerosos mal-entendidos do lado de seus intérpretes.
A noção de Beruf
Até aqui, nossa análise deu pouca consideração a Lutero, exceto para opor, ocasionalmente, o luteranismo e o calvinismo. Parece, então, que a doutrina luterana não terá desempenhado um papel no advento do capitalismo. À primeira vista, tal observação pode parecer adequada, sobretudo .se levamos em conta algumas observações de Weber. Por um lado, o capitalismo teve o seu berço na Holanda e na Inglaterra, antes de emigrar para a América, isto é, nos países ditos reformados, embora Weber considere que "reformado" não é absolutamente sinônimo de "calvinista". A Alemanha luterana manteve-se à parte do movimento, e quando o espírito capitalista penetrou nela foi sob impulso da minoria reformada. Por outro lado, Weber pensa que, sem o calvinismo, o protestantismo não passaria de uma religião confinada no norte da Europa. Se conseguiu implantar-se em quase todas as partes do mundo, foi graças ao espírito expansionista do calvinismo.
E no entanto o papel do próprio Lutero — não o do luteranismo — não foi nulo, nem sequer negligenciável. É verdade que Lutero não contribuiu.para o surgimento positivo e o histórico do capitalismo enquanto sistema econômico — mas elaborou uma maneira de conceber a ética que influenciou o espírito do capitalismo. É neste sentido que dissemos, acima, que a noção de "ética protestante", que figura no título da olra de Weber, não é tão incongruente quanto alguns o pensam. Compete-nos então, se quisermos fazer uma avaliação correta do pensamento de Weber, mostrar por que Lutero não foi diretamente, porém indiretamente, uma das fontes do espírito capitalista.
Várias vezes, nas linhas que precedem, aludimos ao obstáculo que a doutrina de Lutero constituiu para o surgimento da economia capitalista. Esta tem por fundamento a empresa levada racionalmente a cabo, com base num comportamento racional e metódico dos agentes econômicos. Com efeito — é esta a idéia cardeal da tese de Weber — a racionalidade econômica não é intrínseca ao desenvolvimento da economia, mas é introduzida de fora, graças à atividade dos homens que adotaram uma conduta racional, neste caso devido a motivos éticos inspirados por uma pastoral religiosa. Ora, esta racionalidade da conduta não se encontra na doutrina de Lutero. É por isso que o luteranismo não era capaz de imprimir um novo rumo à economia.
Por um lado, com efeito, Lutero abre espaço à espontaneidade e à emoção ingênua na condução da vida. Ele sofria o que hoje chamamos de "estados d’alma". Em todo caso, não excluía a união mística, como mostram as suas referências ao místico re-nano Tauler. É que Lutero tinha uma consciência viva do pecado original, o que significa que ele sentia intensamente a indignidade da criatura causada por este pecado, contrastando assim com a certeza que os puritanos tinham da eleição divina. Por conseguinte, a idéia de uma possível danação eterna fazia parte da experiência religiosa do luterano. Em outras palavras, o mundo de Lutero conservava o encantamento. Deste ponto de vista, Lutero estava mais perto do catolicismo que os calvinistas, isto é, era mais tradicionalista. "Faltavam-lhe por completo o estímulo do controle constante de si mesmo", escreve Weber, "a regulação metódica da vida pessoal que a pesada doutrina calvinista implica. Um gênio religioso como Lutero podia viver sem problemas nesta atmosfera de abertura ao mundo e de liberdade tanto tempo quanto o seu impulso lhe permitisse" (17). Compreende-se, nestas condições, que Lutero desconfiasse do ascetismo, de uma sistematização da conduta e de uma racionalização metódica da existência. O fiel tinha, para ele, direito a gozar a vida, desde que a fé permanecesse intacta. Assim, ao contrário dos calvinistas, a doutrina de Lutero não excluía o arrependimento e a regeneração da alma que se extraviara, simplesmente porque não fornecia nenhuma segurança acerca da certitudo salutis ou da possibilidade de ser um santo que tivesse atingido a perfeição. Tal contraste Weber resume da seguinte maneira: "Os calvinistas acusam os luteranos de sentirem ‘um verdadeiro terror só de pensarem em se tornar santos’ (Moehler); os luteranos, em compensação, censuram aos calvinistas a sua ’submissão ser-vil à lei’, assim como a sua arrogância" (18). A novidade ou modernidade de Lutero consistiu em rejeitar a idéia salvação pelas obras,seguinte a de contabilização das boas ações.Nada podia irritar mais a Lutero do que o uso das indulgências, que não constituía um abuso menor, mas o mal profundo da Igreja. As obras, isto é, os frutos do trabalho, pelo contrario, constituem, aos olhos do puritano, um dos sinais da eleição. O sucesso no mundo, sob a forma de uma organização econômica e social, opunha-se ao sentimento de Lutero, que se mantinha fiel à autoridade política e indiferente a toda inovação que não fosse religiosa. De um angulo mais geral, "a tendência à disciplina ascética, aos olhos de Lutero, era suspeita de constituir uma santificação pelas obras", o que o levou, e sua Igreja com ele, a repetir com ênfase crescente esta idéia" (19). É verdade que Lutero proferiu imprecações contra os privilegiados da fortuna seus contemporâneos, especialmente contra os Fugger (20), mas não o fez em nome da idéia de austeridade ou de ascetismo, e sim com base na doutrina tradicional a respeito das aquisições injustas e ilícitas. Com efeito, Lutero praticamente’ não estava a par dos escritos econômicos de sua época, como por exemplo os de Antonino de Florença, que contestava os argumentos acerca da esterilidade do dinheiro. Afinal, como observa Weber: "Em numerosas declarações contra a usura e o juro em geral, Lutero exprime sem qualquer equívoco, sobre a natureza da aquisição capitalista, convicções que, comparadas às da escolástica tardia, de um ponto de vista capitalista são francamente atrasadas" (21). Para dizer a verdade, Calvino nào tinha mais conhecimentos a este respeito que Lutero. O que é uma razão a mais para não confundirmos a doutrina de Calvino com a posterior pastoral dos puritanos.
A contribuição de Lutero
Aclaremos mais uma vez qual é a ética de Weber. Não dirige a atenção para a origem da economia capitalista enquanto prática econômica recém-introduzida no circuito empírico das trocas e da produção, mas para o espírito do capitalismo, quer dizer, a mentalidade que favoreceu a inovação capitalista. Por sinal, os pastores puritanos também não conheciam a literatura econômica do seu tempo, e no entanto influenciaram o espírito da nova economia com sua pregação. É no mesmo sentido que devemos compreender a contribuição de Lutero para o espírito do capitalismo.
Vimos que importância os primeiros empresários atribuíam ao ofício, que consideravam como uma vocação: estavam tomados pela. certeza de que Deus os chamara a determinado ofício, para que o fizessem frutificar com vistas à maior glória divina. Ora, foi Lutero o primeiro a elaborar esta maneira de conceber o ofício, com o vocábulo de Beruf, que tem a dupla conotação de profissão e vocação. É difícil, aliás, traduzir este termo em outras línguas por uma palavra que possa respeitar o seu duplo sentido. O próprio Weber observa-o: nas outras línguas "não existe nenhum vocábulo com matizes adequadas a designar o que nós, alemães, denominamos Beruf" (22). Foi por meio dessa noção que Lutero pesou no espírito do capitalismo, embora os calvinistas e purita nos a tenham recebido bem tardiamente apenas no correr do século XVII.
Foi traduzindo a obra de Jesus ben Sira que Lutero deparou com a noção de Beruf, para traduzir os termos ergon e ponos, que significam a ocupação contínua a que um homem se dedica. Será exata a tradução? Weber considera que ela mais reflete a interpretação do tradutor do que o sentido original. Pouco importa, porém; o fato é que o vocábulo veio a tomar-se corrente nos meios luteranos, antes de emigrar para outros países protestantes, recebendo, por exemplo, a denominação de calling em inglês. Somente as línguas latinas ficaram de fora, não tendo ainda conceito único para exprimir a noção de Beruf na sua dupla conotação de profissão e vocação.
Com essa noção, Lutero pensava atribuir valor positivo à atividade cotidiana e temporal enquanto expressão da vida moral, ao contrário do catolicismo que valorizava mais a vida monástica e os atos descontínuos e excepcionais de caridade, ou as boas obras. Desde então a labuta puramente tem poral adquiria dignidade igual à da tarefa espiritual. Talvez Lutero tenha sofrido a este respeito a influência do místico Tauler, que já considerava como equivalentes as vocações espiritual e mundana. Desimcubir-se corretamente do trabalho profissional passou então a constituir um dever e uma maneira de viver que agrada a Deus. Foi uma profunda mudança na mentalidade da época, pois, como nota Weber, "tal valorização da vida neste mundo, considerada com -uma tarefa a cumprir, teria sido impossível na pena de um autor medieval" (23). De resto, é verdade que o pensamento de Lutero variou acerca dessa questão no correr da sua vida, especialmente em conseqüência da Guerra dos Camponeses, pois constata-se um retorno à concepção tradicional após esta agitação. Contudo, estas considerações só valem para estudarmos a evolução do pensamento pessoal de Lutero, pois o luteranismo mais tarde vulgarizou a noção de Beruf, que, retomada pelos puritanos, tornar-se-á, como vimos, um dos conceitos-chave da sua ética.

Constatamos acima o quanto a ética puritana era severa e rigorista. Contudo , se é verdade que o capitalismo nascente foi acima de tudo obra dos calvinistas, a contribuição destes não foi exclusiva. Outros retomados empenharam-se na mesma via, de maneira menos característica: pietistas, metodistas e batistas. Weber consagra-lhes um certo numero de páginas. Eles abrandaram e temperaram a rigidez puritana, incluindo na sua doutrina elementos de proveniência luterana, em especial a abertura de um espaço para a espontaneidade e o sentimento davida.
Numa certa medida, o pietismo reforçou o ascetismo calvinista, mas, ao mesmo tempo, e muito mais flexível no que diz respeito à dogmática. Manifestou desconfiança pela Igreja dos teólogos, considerando até que os predestina dos podiam estar sujeitos a erros e a pecados. Por um lado, portanto, aproximava-se do calvinísmo ao recomendar o ascetismo e a integração das boas sob a condição de que fossem realizadas para a maior glória de Deus. Por outro, e avizinhava-se do luteranismo admitindo a regeneração de uma alma que se extraviasse provisoriamente e repugnando a solidão de um "eu" puramente racional, amputado de toda sensibilidade. Sem dúvida, as boas obras nào eram absolutamente necessárias para a salvação, mas tornavam-se necessárias desde que se adquirisse a certeza desta, porque quem abrisse mão delas não seria realmente salvo.
Encontra-se esta mesma mistura incerta no metodismo. Como o próprio nome indica, defende este uma condução sistemática da vida. característica do puritanismo, mas também concede grande importância à espontaneidade na prática religiosa, chegando mesmo a aprovar o êxtase. Até considera que podemos alcançar a consciência da perfeição já besta vida. embora tal objetivo seja difícil de se atingir, de modo que não é possível realizá-lo a não ser perto da morte. Contudo, como no luteranismo, a graça pode ser sentida internamente, o que quer dizer que a conduta virtuosa e rígida não é bas-tante; mas, como o calvinista. o metodista aceita a prática das boas obras, embora não sejam causa de estado de graça, apenas meio para reconhecê-lo.
Weber considera os batistas não como uma igreja, mas como um conjunto de seitas que. na maior porte nasceram na Europa nos confins do luteranismo. O fundamento espiritual destas seitas diverge em profundidade da doutrina calvinista, na medida em que se referem (pelo menos as primeiras comunidades históricas) ao pneumatismo da Igreja primitiva e repousam na regeneração do fiel através de um segundo nascimento pelo batismo. O aspecto pneumático da sua doutrina faz que não concebam a Bíblia como fonte única da revelação, pois esta é permanente, no sentido de que o Espírito Santo pode agir cotidianamente em cada crente e conceder-lhe o espírito profético. Tais seitas, porém, aproximam-se. do calvínismo porque, por um lado, integram na prática as boas obras, por outro, preconizam a impregnação da vida pelas virtudes ascéticas. Em suma, o homem deve agir neste mundo — embora diversas seitas recusem praticar o Juramento ou fazer o serviço militar, mas nunca fazendo deste mundo a finalidade da existência.
Como de hábito, Max Weber esmaltou a sua análise de considerações epistemológicas, que fazem parte integrante do texto e que é necessário levar em conta durante a leitura para captar o seu método de investigação. É este aspecto, aliás, que irrita os numerosos pseudo-sociólogos que fazem da sociologia uma arma de combate ideológico, desprezando a lógica interna de uma ciência. Em particular, Weber não abordou a noção de capitalismo com o parti pris do sectário que começa lançando sobre o sistema econômico a culpa por todos os pecados da terra. Deste ponto de vista ele até é mais fiel a Marx que os soi-disant marxistas contemporâneos que povoam as universidades, pois um dos mais belos elogios do capitalismo está justamente assinado por Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista. É verdade que, em certos meios, existe o costume de se ler Marx tão mal quanto Weber. Contudo, os preconceitos atuais nunca chegarão a obliterar o fato de que o capitalismo não somente transformou a economia em profundidade, mas também deu nova fisionomia à civilização (este é um ponto no qual Weber insiste várias vezes). Além disso, o socialismo nasceu do capitalismo, o que quer dizer que não seria compreensível o socialismo sem o capitalismo e que talvez o fim deste também signifique o fim daquele. O socialismo não é o contrário do’capitalis-mo, como se crê, mas tem este em seu coração.
A atitude científica de Weber consiste em reconhecer que o capitalismo é um fenômeno histórico de primeira grandeza. Isso posto — e como não o reconhecer, a não ser de má fé? — indaga-se acerca da origem deste capitalismo moderno. Também é in- discutível historicamente que ele nasceu em certos meios religiosos que, por preconizarem uma conduta ética racional, introduziram essa racionalidade na gestão econômica. Assim criaram um espírito novo, uma nova mentalidade, que favoreceu a eclosão do capitalismo moderno. É isto o que Weber denomina o espírito do capitalismo. Em todo caso, é esta questão e apenas ela que o interessa n‘A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em outras obras, especialmente na sua notável Wirtschaftsgeschichte (História da economia), já não se ocupa tanto com o espírito do capitalismo, mas com a maneira pela qual o capitalismo, enquanto instituição concreta, implantou-se material e historicamente no Ocidente. Não ignora absolutamente as contradições do capitalismo, mas tampouco o converte em uma salada ideológica, sabendo, sociólogo sagaz e lúcido, que toda instituição humana (inclusive o socialismo inevitavelmente comporta contradições. Existe um duplo erro espitemológico que se deve evitar. Consiste o primeiro em acentuar as contradições de um sistema para melhor dissimular as de outro.
O segundo está em criticar um sistema a partir de outro, por exemplo, criticar o socialismo a partir do capitalismo ou o inverso, pois as contradições do capitalismo não são as que se lhe pode imputar a partir do socialismo, mas as suas intrínsecas, no sentido de que a doutrina capitalista não é totalmente harmoniosa em si mesma.
O espírito do capitalismo
É no mesmo espírito que Weber aborda a análise do protestantismo e de suas diversas formas históricas e empíricas: o luteranis-mo, o calvinismo, assim como suas diversas fisionomias, por exemplo o purítanismo ou o metodísmo. Em nenhum momento tenta avaliar ontologicamente estas diversas religiões, proclamando por exemplo a superioridade do calvinismo sobre c luteranismo, ou o contrário. Esse tipo de avaliação compete aos crentes, não ao pesquisador. O problema deste é apreender no que tais doutrinas convergem e no que divergem quanto à ética,, e ao comportamento econômico, em que pontos se aproximam do catolicismo ou deles se afastam. Todas comportam, ademais, contradições. É por isso que escreve, à p. 188: "Não devemos esquecer que o puritanismo continha um mundo de contradições". Esta noção de contradição está ha própria base da distinção que estabelece entre a doutrina de Calvino e a pastoral dos pregadores calvinistas posteriores. Uma das passagens mais características se encontra à p. 105, quando mostra a dupla orientação da pastoral puritana, para superar as dificuldades e as contradições da doutrina. Mas Weber também precisa como a pastoral finalmente conseguiu vergar a doutrina primitiva e a sua dogmática, modificai do, portanto, no correr do tempo, a fisionomia desta religião. Com efeito, toda religião se desvia, ao passarem os séculos, do seu princípio original. Poderíamos acrescentar que, no fundo, .a ideologia moderna, à sua maneira, no contexto moderno, é como que um remanejamento da antiga pastoral, com o fim de tentar camuflar as contradições dá doutrina que lhe serve de base.

—É claro que não se poderia atribuir a Calvino o nascimento do capitalismo — nem a emergência, no século XVII, do puritanismo. Weber insiste a esse respeito: "É por isso que devemos admitir que os efeitos da Reforma sobre a cultura, em grande parte — ou mesmo, de nosso ponto de vista particular, na parte preponderante —, tenham sido conseqüências imprevistas, não desejadas, da obra dos reformadores — conseqüências às vezes muito afastadas de tudo o que eles se propuseram a atingir, às vezes até mesmo
em contradição com tais metas" (24). A história é feita de conseqüências não previstas e não desejadas, quando as comparamos com as Intenções dos agentes. O ascetismo pregado pelos pastores puritanos não era policial nos seus princípios, e no entanto, como observa Weber, "a vigilância absolutamente policial sobre a vida das pessoas, nas igrejas calvinistas estabelecidas, comparava-se à da Inquisição" (25). Outra conseqüência paradoxal, reside no fato de que, embora o purítanismo, como toda religião cristã, fosse atraído pela transcendência, para a ação ad majorem Dei Gloriam, na realidade, porém, contribuiu em ampla medida para a secularização do mundo moderno, orientando a civilização "para este mundo" (26).
Chegamos assim ao fundamento do pensamento epistemológico de Weber, que ele expôs com maior clareza no seu estudo sobre Die Objektivitaet sozialwissenschaftlicher und sozialpolitischer Erkenntnis (27). Na sociologia, importa considerar que toda atividade pode ser tanto condicionante quanto condicionada, simultaneamente ou na sucessão do tempo. A religião pode condicionar a economia, assim como pode ser condicionada por esta última; a ética pode condicionar a política ou por ela ser condicionada. A ideologia consiste em privilegiar unilateralmente um destes dois movimentos, proclamando por exemplo que toda a vida social seria condicionada pela economia, de modo que a religião, a moral ou o direito não passassem de meras superestruturas da economia. Seria travestir a realidade histórica não reconhecer o império que" exercia a religião sobre os espíritos, no século XVI, no qual a fé foi tão intensa que suscitou as guerras de religião. A economia não passou de um papel secundário nesta questão. Não esteve ausente dela, mas não constituí a sua explicação globalizante. Por isso Weber nunca cessou suas advertências. "Está fora de questão sustentar uma tese tão pouco razoável e tão doutrinária, que pretendesse que o espírito do capitalismo(…) não passaria de resultado de certas influências da Reforma, chegando mesmo a afirmar que o capitalismo enquanto sistema econômico é uma criação dela (28)." ‘
Ou ainda, "temos dç nos livrar da idéia de que a Reforma pode ser deduzida como historicamente necessária, a partir de transformações econômicas" (029). Ou, finalmente: "Será necessário protestar que o nosso desígnio não é, absolutamente, substituir uma interpretação causai e estritamente materialista da história por uma interpretação espiritualista da civilização e da história, que não seria menos unilateral que a outra? (30). Infelizmente, comentaristas em excesso não levaram em conta essas precau ções, embora tão explícitas.
A primeira condição para a leitura cien tífíca de uma obra, como agora a de Weber. é que a compreendamos com suas próprias categorias e não a partir de outras que lhe sejam exteriores, ou de um a priori que desfigure o seu pensamento. Esta confusão está na base de certas controvérsias inúteis} que terminam dando em nada do ponto de vista científico. Isso posto, seria estúpido negar que também existem contradições no pensamento de Weber, mas só conseguire mos extraí-las e delimitá-las se nos dermos ao trabalho de conhecer bem o que ele disse e escreveu efetivamente, em vez de lhe atribuirmos dizeres que não são os seus. Este é até o primeiro dever da probidade íntelec tual. (Tradução de Renato Janine Ribeiro)
Notas
(1) Vocação ou profissão.
(2) Veja-se o texto "Dit protesrantische Ethik und dar Geist des Kapiralismus", In Max Weber, Gesammelte Aufsaetze zur Religionssoziologie, Tubinga, Mohr, 1947, t. I, pp. 192-193. Não havando outra menção, as referencias no correr do artigo são a esta obra. (N. do T.: Existe uma tradução brasileira, por Maria Irene Symrecsányi e Tomás Szmrcsányi, dasta obra da Webar: A Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo, São Paulo, Pioneira, 1968. Dois capítulos dela foram incluídas no volume Weber de Os Pensadores, editora Abril; uma nova edição do livro foi lançada este ano pela Editora Universidade da Brasilia.)
(3) Ibid. p. 117.
(4) Entra outras, à p. 89 nota 1, à p. 106 nota 1. p. 123, ou, ainda, è p. 163.
(5) E neste sentido que se deve entender a frase de Weber: "As indústrias então nascentes foram, na maior parte, obra de novos-ricos", p. 50.
(6) Isto é, a doutrina de que a salvação se dá apenas pela fé (N. do T.).
(7) Ibid,, p.123.
(8) Ibid., p.111.
(9) Weber, porém, não exclui que a mística possa constituir uma fonte de racionalidade, mas uma mística diferente em sua natureza da do calvinista. Ver as pp. 107-106.

(10) Ibid.. p. 175, nota 2.
(11) Ibid., pp. 175-176.
(12) Ibid., p. 195.
(13) Ibid., p. 124.
(14) Ibid., p. 203.
(15) Ibid. p. 197.
(16) Ibid., p. 204.
(17) Ibid , p. 127.
(10) Ibid., p. 122, nota 2.
(19) Ibid, p. 79.
(20) Importantes banqueiros alemães do século XVI; entre outros investimentos financiaram em 1519 a eleição de Carlos V como imperador Romano-Germânico, que mais tarda condenaria e tentaria perseguir Lutero (N. do T.).
(21) Ibid., pp. 73-74. (22) Ibid., p. 63.

(23) Ibid., p. 80
(24) Ibid., p. 82.
(25) Ibid., p. 161.
(26) Ibid., p.82.
(27) Veja-se Max Weber, Gesammelte Aufsaetze zur Wis senschaftslehre, Tubinga, Mohr, 1951, p. 162.
(28) Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalis-mus, p. 83.
(29) Ibid., p.83.
(30) Ibid., p. 205.
O Autor — Julien Freund é sociólogo, tradutor e introdutor das obras de Max Weber na França. Leciona na Universidade de Strasbourg.