domingo, 25 de outubro de 2009

Ideologia

O link acima direcionará a um arquivo power point sobre o surgimento de alguns valores e, consequentemente, de alguns comportamentos dos quais não sabemos a origem, mas que são repetidos impensadamente por todos nós.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Eric Hobsbawm: uma nova igualdade depois da crise

O "século breve", o XX, foi um período marcado por um conflito religioso entre ideologias laicas. Por razões mais históricas do que lógicas, ele foi dominado pela contraposição de dois modelos econômicos – e apenas dois modelos exclusivos entre si – o "Socialismo", identificado com economias de planejamento central de tipo soviético, e o "Capitalismo", que cobria todo o resto.

Essa contraposição aparentemente fundamental entre um sistema que ambiciona tirar do meio do caminho as empresas privadas interessadas nos lucros (o mercado, por exemplo) e um que pretendia libertar o mercado de toda restrição oficial ou de outro tipo nunca foi realista. Todas as economias modernas devem combinar público e privado de vários modos e em vários graus, e de fato fazem isso. Ambas as tentativas de viver à altura dessa lógica totalmente binária dessas definições de "capitalismo" e "socialismo" faliram. As economias de tipo soviético e as organizações e gestões estatais sobreviveram aos anos 80. O "fundamentalismo de mercado" anglo-americano quebrou em 2008, no momento do seu apogeu. O século XXI deverá reconsiderar, portanto, os seus próprios problemas em termos muito mais realistas.

Como tudo isso influi sobre países que no passado eram devotados ao modelo "socialista"? Sob o socialismo, haviam reencontrado a impossibilidade de reformar os seus sistemas administrativos de planejamento estatal, mesmo que os seus técnicos e os seus economistas estivessem plenamente conscientes das suas principais carências. Os sistemas – não competitivos em nível internacional – foram capazes de sobreviver até que pudessem continuar completamente isolados do resto da economia mundial.

Esse isolamento, porém, não pôde ser mantido no tempo, e, quando o socialismo foi abandonado – seja em seguida à queda dos regimes políticos como na Europa, seja pelo próprio regime, como na China ou no Vietnã – estes, sem nenhum pré-aviso, se encontraram imersos naquela que para muitos pareceu ser a única alternativa disponível: o capitalismo globalizado, na sua forma então predominante de capitalismo de livre mercado.

As consequências diretas na Europa foram catastróficas. Os países da ex-União Soviética ainda não superaram as suas repercussões. A China, para sua sorte, escolheu um modelo capitalista diferente do neoliberalismo anglo-americano, preferindo o modelo muito mais dirigista das "economias tigres" ou de assalto da Ásia oriental, mas abriu caminho para o seu "gigantesco salto econômico para frente" com muito pouca preocupação e consideração pelas implicações sociais e humanas.

Esse período está quase às nossas costas, assim como o predomínio global do liberalismo econômico extremo de matriz anglo-americana, mesmo que não saibamos ainda quais mudanças a crise econômica mundial em curso implicará – a mais grave desde os anos 30 –, quando os impressionantes acontecimentos dos últimos dois anos conseguirão se superar. Uma coisa, porém, é desde já muito clara: está em curso uma alternância de enormes proporções das velhas economias do Atlântico Norte ao Sul do planeta e principalmente à Ásia oriental.

Nessas circunstâncias, os ex-Estados soviéticos (incluindo aqueles ainda governados por partidos comunistas) estão tendo que enfrentar problemas e perspectivas muito diferentes. Excluindo de partida as divergências de alinhamento político, direi apenas que a maior parte deles continua relativamente frágil. Na Europa, alguns estão assimilando o modelo social-capitalista da Europa ocidental, mesmo que tenham um lucro médio per capita consideravelmente inferior. Na União Europeia, também é provável prever o aparecimento de uma dupla economia. A Rússia, recuperada em certa medida da catástrofe dos anos 90, está quase reduzida a um país exportador, poderoso mas vulnerável, de produtos primários e de energia e foi até agora incapaz de reconstruir uma base econômica mais bem balanceada.

As reações contra os excessos da era neoliberal levaram a um retorno, parcial, a formas de capitalismo estatal acompanhadas por uma espécie de regressão a alguns aspectos da herança soviética. Claramente, a simples "imitação do Ocidente" deixou de ser uma opção possível. Esse fenômeno ainda é mais evidente na China, que desenvolveu com considerável sucesso um capitalismo pós-comunista próprio, a tal ponto que, no futuro, pode também ocorrer que os historiadores possam ver nesse país o verdadeiro salvador da economia capitalista mundial na crise na qual nos encontramos atualmente. Em síntese, não é mais possível acreditar em uma única forma global de capitalismo ou de pós-capitalismo.

Em todo caso, delinear a economia do amanhã é talvez a parte menos relevante das nossas preocupações futuras. A diferença crucial entre os sistemas econômicos não reside na sua estrutura, mas sim na suas prioridades sociais e morais, e estas deveriam portanto ser o argumento principal do nosso debate. Permitam-me, por isso, a esse ilustrar dois de seus aspectos de fundamental importância a esse propósito.

O primeiro é que o fim do Comunismo comportou o desaparecimento repentino de valores, hábitos e práticas sociais que haviam marcado a vida de gerações inteiras, não apenas as dos regimes comunistas em estrito senso, mas também as do passado pré-comunista que, sob esses regimes, haviam em boa parte se protegido. Devemos reconhecer quanto foram profundos e graves o choque e a desgraça em termos humanos que foram verificados em consequência desse brusco e inesperado terremoto social. Inevitavelmente, serão necessárias diversas décadas antes de que as sociedades pós-comunistas encontrem uma estabilidade no seu "modus vivendi" na nova era, e algumas consequências dessa desagregação social, da corrupção e da criminalidade institucionalizadas poderiam exigir ainda muito mais tempo para serem combatidas.

O segundo aspecto é que tanto a política ocidental do neoliberalismo, quanto as políticas pós-comunistas que ela inspirou subordinaram propositalmente o bem-estar e a justiça social à tirania do PIB, o Produto Interno Bruto: o maior crescimento econômico possível, deliberadamente inigualitário. Assim fazendo, eles minaram – e nos ex-países comunistas até destruíram – os sistemas da assistência social, do bem-estar, dos valores e das finalidades dos serviços públicos. Tudo isso não constitui uma premissa da qual partir, seja para o "capitalismo europeu de rosto humano" das décadas pós-1945, seja para satisfatórios sistemas mistos pós-comunistas.

O objetivo de uma economia não é o ganho, mas sim o bem-estar de toda a população. O crescimento econômico não é um fim, mas um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas. Não importa como chamamos os regimes que buscam essa finalidade. Importa unicamente como e com quais prioridades saberemos combinar as potencialidades do setor público e do setor privado nas nossas economias mistas. Essa é a prioridade política mais importante do século XXI.

fonte: http://www.cartamaior.com.br

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Texto de apoio sobre o surgimento de novas ideias que permitiram o desenvolvimento do comércio e, consequentemente, do capitalismo

A nova perspectiva instaurada na Idade Moderna através, principalmente, de Descartes deslocou a possibilidade do conhecimento de Deus para a subjetividade. Com isso, o conhecimento deixou de chegar ao homem enquanto relvelação e passou a estar aberto para o investigador da natureza, ou seja, para o cientista. Esse voltar d'olhos para o mundo tal como é e a confiança em poder conhecê-lo sem auxílio de ser supremo nenhum dotou esse mesmo mundo e a própria subjetividade duma dignidade nunca antes vista. Sendo agora tanto o próprio homem quanto o mundo merecedores de atenção, modificam-se as relações sociais, epistemológicas e econômicas. Semelhantes modificaçôes podem ser vistas no novo modo de organização social da Idade Moderna, na ciência tal qual a conhecemos e no advento do capitalismo. A relação comunal perde sua força e surge, em seu lugar, o indivíduo; o mundo e nós mesmos vimos a ser restringidos ao olhar racional matemático; a produção de mercadoria estende-se a tudo, ou seja, os bens não são mais produzidos para uso próprio, mas para a troca, incluindo-se aí a força de trabalho daquele que produz.

Particularmente importante para nós é olhar mais de perto o estabelecimento da subjetividade e o apreço novo dado ao mundo e ao corpo que possibilitaram, inicialmente, as bases ontológicas do capitalismo. Como dito anteriormente, a desconfiança com relação ao corpo característica da Idade Média por meio da doutrina da Igreja paulatinamente perde sua força com a desistência do plano supra-sensível em prol do sensível, i. e., com a desistência de encontrar a felicidade no céu em favor de encontrá-la na terra, no mundo. Desse modo, tanto o mundo quanto o que nele se encontra passam a ser atendidos de perto. É importante perceber que, dentre tudo o que é mundano, a maior atenção é voltada para o corpo. Se antes importava apenas a alma, agora o corpo ganha crescente importância. A importância do corpo, do mundo e da materialidade exige correspondente lida social e econômica. É justamente a requisição dessa exigência que está na gênese do que conhecemos com o nome de capitalismo. É interessante olharmos esse fenômeno mais de perto e vê-lo, também, de modo historiográfico. Para isso, leiamos o capítulo 4 do livro de Leo Huberman, A História da Riqueza do Homem:


A maioria dos negócios é hoje realizada com dinheiro emprestado, sobre o qual pagam juros. Se a United States Steel Company quiser comprar outra empresa de aço que lhe estiver fazendo concorrência, provavelmente tomará emprestado o dinheiro. Poderá conseguir isso emitindo ações que são simplesmente promessa de devolver, com juros, qualquer soma de dinheiro que o comprador de ações empreste. Quando o dono da loja da esquina pretende adquirir coisas novas para seu negócio, vai ao banco tomar emprestado o dinheiro. O banco empresta determinada importância, cobrando juros. O fazendeiro que quiser comprar uma terra adjacente à sua fazenda pode hipotecar sua propriedade para conseguir o dinheiro. A hipoteca é simplesmente um empréstimo ao fazendeiro sob juros anuais. Estamos tão acostumados a esse pagamento de juros pelo dinheiro emprestado que tendemos a considerá-lo "natural", como coisa que tenha existido sempre. Mas não existiu. Houve época em que se considerava crime grave cobrar juros pelo uso do dinheiro. No principio da Idade Média o empréstimo de dinheiro a. juros era proibido por uma Potência, cuja palavra constituía a lei para toda a Cristandade. Essa potência era a Igreja. Emprestar a juros, dizia ela, era usura, e a usura era PECADO. A palavra vai em letras maiúsculas porque assim era considerado qualquer pronunciamento da Igreja naquela época. E um pronunciamento que ameaçasse com a danação eterna aqueles que o violavam, tinha particular importância. Na época feudal, a influência da Igreja sobre o espírito do povo era muito maior do que hoje. Mas não era apenas a Igreja que condenava a usura. Os governos municipais e mais tarde os governos dos Estados baixaram leis contra ela. Uma "lei contra a usura"' aprovada na Inglaterra dizia: "Sendo a usura pela palavra de Deus estritamente proibida, como vicio dos mais odiosos e detestáveis proibição essa que nenhum ensinamento ou persuasão pode fazer penetrar no coração de pessoas ambiciosas, sem caridade e avarentas deste Reino fica determinado que nenhuma pessoa ou pessoas de qualquer classe, estado, qualidade ou condição, por qualquer meio corrupto, artificioso ou disfarçado, ou outro, emprestem, dêem, entreguem ou passem qualquer soma ou somas de dinheiro para qualquer forma de usura, aumento, lucro, ganho ou juro a ser tido, recebido ou esperado, acima da soma ou somas dessa forma emprestadas sob pena de confisco da soma ou somas emprestadas bem como da usura e ainda da punição de prisão." Essa lei era um reflexo do que a maioria das pessoas na Idade Média pensava sobre a usura. Concordavam em que era um mal. Mas, por quê? Como surgira essa atitude para com o juro? Devemos procurar nas relações da sociedade feudal a resposta. Naquela sociedade, onde o comércio era pequeno e a possibilidade de investir dinheiro com lucro praticamente não existia, se alguém desejava um empréstimo, certamente não tinha por objetivo o enriquecimento, mas precisava dele para viver. Tomava o empréstimo simplesmente porque alguma desgraça lhe ocorrera. Talvez lhe morresse a vaca, ou a seca lhe tivesse arruinado as colheitas. Estava em má situação e necessitava de ajuda. De acordo com o sentimento medieval, a pessoa que, nessas circunstâncias, o ajudasse, não deveria lucrar com sua desventura. O bom cristão ajudava o vizinho sem pensar em lucro. Se emprestava a alguém um saco de farinha, esperava receber de volta apenas um saco de farinha, e nada mais. Se recebesse mais, estaria explorando o companheiro - o que não se considerava justo. O justo era receber apenas o que se emprestara, e nada mais nem menos. A Igreja ensinava que havia o certo e o errado em todas as atividades do homem. O padrão do que era certo ou errado na atividade religiosa não diferia das demais atividades sociais ou, mais importante ainda, do padrão das atividades econômicas. As regras da Igreja sobre o bem e o mal aplicavam-se a todos os setores, igualmente. Hoje em dia, é possível fazer,. num negócio comercial, a um estranho, o que não faríamos a um amigo ou vizinho. Temos padrões diferentes para os negócios, e que não se aplicam a outras atividades. Assim, o industrial fará tudo ao seu alcance para esmagar um concorrente. Venderá com prejuízo, se empenhará numa guerra comercial, conseguirá descontos especiais, tentará todos os recursos possíveis para encurralar seu rival. Essas atividades arruinarão o competidor. O industrial ou comerciante sabe disso, mas não obstante continua a realizá-las, porque "negócio é negócio". No entanto essa mesma pessoa não permitiria, nem pois um minuto, que um amigo ou vizinho passasse fome. Essa existência de um padrão para a atividade econômica e outra pura a atividade não-econômica era contrária aos ensinamentos da Igreja na Idade Média. E a maioria das pessoas acreditava geralmente nos ensinamentos da Igreja. A Igreja ensinava que, se o lucro do bolso representava a ruína da alma, o bem-estar espiritual é que estava em primeiro lugar. "Que lucro terá o homem, se ganhar todo o mundo e perder sua alma?" Se alguém obtivesse numa transação mais do que o devido, estaria prejudicando a outrem, e isso estava errado. Santo Tomás de Aquino, o maior pensador religioso da Idade Média, condenou a "ambição do ganho". Embora se admitisse, com relutância, que o comércio era útil, os comerciantes não tinham o direito de obter numa transação mais do que o justo pelo seu trabalho. Os homens da Igreja na Idade Média teriam condenado fortemente o intermediário que, alguns séculos mais tarde, se tornara, segundo a definição de Disraeli, "um homem que trapaceia de um lado e saqueia do outro". A moderna noção de que qualquer transação comercial é lícita desde que seja possível realizá-la não fazia parte do pensamento medieval. O homem de negócios bem sucedido de hoje, que compra pelo mínimo e vende pelo máximo, teria sido duas vezes excomungado na Idade Média. O comerciante, porque exercia um serviço público necessário, tinha direito a uma boa recompensa e a nada mais do que isso. Também não se considerava ético acumular mais dinheiro do que o necessário para a manutenção própria. A Bíblia era clara quanto a isso: "Ë mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus." Um autor da época assim se manifestou: "Quem tem o bastante para satisfazer suas necessidades, e não obstante trabalha incessantemente para adquirir riquezas, seja para conseguir uma posição social melhor, seja para viver mais tarde sem trabalhar, ou. para que seus filhos se tornem homens de riqueza e importância - todos esses estão dominados por uma avareza, sensualidade ou orgulho condenáveis." Os que estavam habituados aos padrões de uma economia natural simplesmente aplicaram tais padrões à nova economia monetária em que se viram. Assim, se alguém emprestava a outro cem libras, julgava-se que tinha o direito moral de exigir de volta apenas cem libras. Quem cobrasse juros pelo uso do dinheiro estaria vendendo tempo, e tempo não pertence a ninguém, para que possa ser vendido. O tempo pertence a Deus, e ninguém tinha o direito de vendê-lo. Além disso, emprestar dinheiro e receber de volta não apenas o total emprestado, mas também um juro fixo, significava a possibilidade de viver sem trabalhar - o que estava errado. (Pelo pensamento medieval, os sacerdotes e guerreiros estavam "trabalhando" nas ocupações para as quais estavam habituados. Alegar que o dinheiro é quem trabalhava para seu dono seria apenas irritar os homens da Igreja. Teriam respondido que o dinheiro era estéril, não podia produzir nada. Cobrar juros era totalmente errado - dizia a Igreja). Isso é o que ela dizia. O que dizia e o que fazia, porém, eram duas coisas totalmente diferentes. Embora os bispos e reis combatessem e fizessem leis contra os juros, estavam entre s primeiros a violar tais leis. Eles mesmos tomavam empréstimos, ou os faziam, a juros - exatamente quando combatiam outros usurários! Os judeus, que geralmente concediam pequenos empréstimos a juros enormes porque corriam grande risco, eram odiados e perseguidos, desprezados em toda parte como usurários. Os banqueiros italianos emprestavam dinheiro em grande escala, fazendo negócios enormes - e freqüentemente, quando seus juros não eram pagos, o próprio Papa ia cobrá-los, ameaçando com um castigo espiritual! Mas a despeito do fato de ser um dos maiores pecadores, a Igreja continuava a gritar contra os usurários. Ë fácil ver que a doutrina do pecado da usura iria limitar os processos do novo grupo de comerciantes que desejava negociar numa Europa em expansão comercialmente. Tornou-se na verdade um obstáculo quando o dinheiro começou a ter um papel cada vez mais importante na vida econômica. A nascente classe média não guardava seu dinheiro em caixas-fortes. (Esse hábito pertence ao período feudal, quando eram limitadas as oportunidades de investimento.) O novo grupo de mercadores podia empregar todo o dinheiro de que dispusesse e mais ainda. Para manter seu negócio, para ampliar o campo de suas operações e aumentar os lucros, o comerciante precisava de mais dinheiro. Onde obtê-lo? Podia recorrer aos que emprestavam, aos judeus, como Antônio, o Mercador de Veneza, recorreu a Shylock, o Judeu. Ou podia procurar comerciantes maiores - alguns dos quais haviam deixado de comerciar com mercadorias para comerciar com dinheiro - e que eram os grandes banqueiros do período. Não era fácil, porém. Essa lei da Igreja barrava o caminho, proibindo aos banqueiros ou usurários o empréstimo a juros. Que aconteceu então, quando a doutrina da Igreja, destinada a uma economia antiga, chocou-se com a força histórica representada pelo aparecimento da classe de comerciantes? Foi a doutrina quem cedeu. Não de uma só vez, evidentemente. Lentamente, centímetro por centímetro, nas novas leis que diziam: "A usura é um pecado - mas, sob certas circunstâncias”..., ou então: "Embora seja pecado exercer a usura, não obstante em casos especiais”... Os casos especiais que neutralizavam a doutrina da usura são esclarecedores. Se o banqueiro B emprestasse dinheiro ao comerciante M, não estava certo que cobrasse juros pelo empréstimo. Mas, dizia a Igreja, como o comerciante M ia usar o dinheiro que tomara emprestado do banqueiro B para uma aventura comercial na qual toda a importância poderia ser perdida, era então justo que M devolvesse a B não - só o que lhe tomara emprestado, mas também um pouquinho mais para compensar B do risco que correra. Ou então, se o banqueiro B tivesse guardado o dinheiro, poderia tê-lo empregado para obter lucro, sendo por isso justo que o comerciante M ao devolver o empréstimo pagasse um pouco mais, para compensar ao banqueiro a não-utilização do dinheiro. Dessa e de outras formas, a doutrina da usura foi medicada, para atender às novas condições. É bastante significativo que Charles Dumoulin, advogado francês que escreveu no século XVI, tenha alegado a "prática comercial diária como justificativa para a legalização de uma "usura moderada e aceitável". Eis aqui sua argumentação: "A prática comercial diária mostra que a utilidade do uso de uma soma considerável de dinheiro não é pequena nem permite dizer que o dinheiro por si não frutifica; pois nem mesmo os campos frutificam sozinhos, sem gastos, trabalho e indústria dos homens; o dinheiro, da mesma forma, mesmo quando deve ser devolvido dentro de um prazo, proporciona nesse período um produto considerável, pela indústria do homem. E por vezes priva a quem empresta de tudo aquilo que traz a quem o toma emprestado. Portanto, toda a condenação, todo o ódio à usura, deve ser compreendido como aplicável à usura excessiva e absurda, não à usura moderada e aceitável."“ Assim, aos poucos foi desaparecendo a doutrina da usura da Igreja, e a pratica comercial diária" passou a predominar. Crenças, leis, formas de vida em conjunto, relações pessoais tudo se modificou quando a sociedade ingressou em nova fase de desenvolvimento.

domingo, 4 de outubro de 2009

Operário em Construção - Vinícius de Moraes




E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.



Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.