sábado, 28 de agosto de 2010

Trabalho em sala de aula

Caros alunos, evitem faltar à aula nesta semana, pois realizaremos um trabalho valendo ponto em sala de aula.

Um grande abraço,
Alexander

domingo, 22 de agosto de 2010

O homem louco

“ O homem louco


– Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”?

– E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse outro.

Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou em um navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-lhes o olhar.

“Para onde foi Deus?”, gritou ele,

“já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra de seu sol? Par aonde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existe ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem!

Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará deste sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos que inventar? A grandeza deste ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa deste ato, a uma história mais elevada que toda história até então!”

Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram !”

– Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem aeternam deo . Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?” 3) .



Nietzsche, in A Gaia Ciência, aforismo 154.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Bem, leiam a entrevista para perceberem que não sou tão louco quanto alguns podem pensar

JC e-mail 4070, de 09 de Agosto de 2010.
16. Avatares vão sair do cinema para a vida real
Neurocientista desenvolve formas inéditas de conectar o cérebro a máquinas e ajudar pessoas com paralisia

Um dos maiores expoentes dos pioneiros estudos sobre a interação entre cérebro e máquinas, o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, do Centro Médico da Universidade de Duke, nos EUA, acaba de conquistar um prêmio inédito do governo americano.

São US$ 2,5 milhões em financiamento de pesquisa ao longo dos próximos cinco anos, que garantirão os recursos necessários para que o cientista dê continuidade a seus trabalhos.

Nos próximos cinco a dez anos, as aplicações imediatas seriam para o mal de Parkinson e algumas paralisias localizadas.

A médio prazo, ele planeja a criação de armaduras virtuais, comandadas pelo cérebro, verdadeiros avatares capazes de devolver movimentos a pessoas paralisadas. A longo prazo, o neurocientista vislumbra um mundo em que toda a comunicação será feita pela mente. Nicolelis integra a lista de 81 contemplados com o Pioneer Award, do Instituto Nacional de Saúde dos EUA, e é o primeiro brasileiro a receber o prêmio.

Leia entrevista:

Prevendo o futuro

"Esse prêmio nos permite dar um salto quântico e ampliar consideravelmente escopo das nossas pesquisas, tanto do ponto de vista tecnológico quanto das perguntas que poderemos fazer, graças à liberdade de ação que ganhamos. Pela própria característica do prêmio é algo com inovação muito grande. A ideia é justamente prever o futuro para os próximos cinco anos em cada área."

Estudos atuais

"Desenvolvemos tecnologia para registrar a atividade elétrica das células do cérebro e criar um ambiente virtual para testar os limites do que é possível fazer tanto no campo da reabilitação neurológica, que inclui mal de Parkinson e doenças degenerativas, quanto para criar um novo paradigma para que toda sorte de novas tecnologias que usam o cérebro como sinal de comando para futuras interações entre homem e máquina possam ser testadas e desenvolvidas. Uma das coisas é criar uma pequena versão de simulador virtual para testar limites desse paradigma, dessa interface cérebro-máquina, e princípios de funcionamento de grandes redes neurais."

O grande simulador

"Queremos entender como o cérebro processa informação, como a obtém, como gera modelos de realidade, do nosso sentido de ser, do nosso corpo, da nossa interpretação do mundo. Queremos ir fundo nos princípios computacionais e fisiológicos que permitem que o cérebro seja um grande simulador da realidade."

Outras aplicações

"As aplicações vão muito além da medicina. Esse entendimento abre novos caminhos, por exemplo, para a arquitetura computacional, novas interfaces para a ampliação da capacidade de ação humana. Podemos pensar em estarmos sentados em um lugar e usar nossa atividade cerebral para controlar um robô ou um artefato qualquer em outro lugar ou mesmo em outro planeta. Essa tecnologia amplia a capacidade de alcance do ser humano."

Avatares

"Em cinco anos possivelmente já poderemos testar o controle, por meio da atividade do cérebro, de um corpo virtual, uma réplica de uma veste robótica para pacientes com paralisia. Vamos usar a atividade elétrica cerebral para termos um corpo virtual, um avatar. Vamos testar inicialmente em primatas e, depois, em humanos. Um paciente com lesão medular poderia usar sua atividade elétrica para controlar a veste."

Células-tronco embrionárias

"Estamos falando de pacientes tetraplégicos há muitos anos, onde células-tronco não teriam efeito. Elas seriam mais indicadas para lesões recentes, como as que serão testadas. Nossa solução serve também para pacientes crônicos. Acho que, no futuro, elas vão se complementar e poderão ser usadas de forma combinadas: células-tronco e veste robótica. É o efeito sinérgico de duas novas tecnologias."

Primeiras aplicações

"Estamos testando, neste momento, a aplicação da nova tecnologia para Parkinson em primatas. Os resultados iniciais são muito bons, encorajadores. O uso em paralisia está sendo desenvolvido por vários grupos, com abordagens diferentes. Acho que teremos muitas surpresas em cinco ou dez anos. Estamos terminando também um projeto em que demonstramos a possibilidade de mandar sinais do artefato de volta para o cérebro (não apenas do cérebro para a máquina). Para isso, estamos criando um código novo de comunicação para publicação nos próximos dias."

A resposta da máquina

"Cada vez que a mão robótica encontra um objeto, ela envia uma mensagem elétrica para cérebro. O cérebro aprende, como uma criança, a associar as mensagens aos tipos de objetos encontrados. É fundamental termos esse retorno sensorial, poder sentir como a ferramenta robótica interage com o mundo, porque é assim que se cria e testa novos modelos de realidade. É importante criar esse feedback tátil, sensorial, para aprimorar o controle dos movimentos, mas também para poder sentir o que se está fazendo ao explorar o ambiente remoto. Trata-se de um novo artefato, uma interface cérebro-máquina-cérebro. O estudo também foi submetido para publicação e acredito que terá um impacto grande."

Do maracanã a marte

"Essa é uma imagem que gosto de usar: você está sentado aí no Rio, assistindo a um jogo no Maracanã, e controlando um robô que passeia pelas dunas de Marte, não só controlando o seu movimento, mas experimentando o que ele experimenta."

A nova era do culto ao cérebro

"No ano que vem lanço um livro com todas as potenciais aplicações da tecnologia no dia a dia. São muitas, como comunicação entre pessoas, interação com computadores. Será um mundo novo, centrado no cérebro. O culto ao corpo finalmente chega ao fim, vamos viver a fase do culto ao cérebro, em que o corpo será apenas um invólucro para manter o cérebro funcionando."
(Roberta Jansen)
(O Globo, 8/8)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Discurso do método

René Descartes




Primeira Parte





INEXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem. E é improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam.

Quanto a mim, nunca supus que meu espírito fosse em nada mais perfeito do que os dos outros; com freqüência desejei ter o pensamento tão rápido, ou a imaginação tão clara e diferente, ou a memória tão abrangente ou tão pronta, quanto alguns outros. E desconheço quaisquer outras qualidades, afora as que servem para o aperfeiçoamento do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso, sendo a única coisa que nos torna homens e nos diferencia dos animais, acredito que existe totalmente em cada um, acompanhando nisso a opinião geral dos filósofos, que afirmam não existir mais nem menos senão entre os acidentes, e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie.

Mas não recearei dizer que julgo ter tido muita felicidade de me haver encontrado, a partir da juventude, em determinados caminhos, que me levaram a considerações e máximas, das quais formei um método, pelo qual me parece que eu consiga aumentar de forma gradativa meu conhecimento, e de elevá-lo, pouco a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade de meu espírito e a breve duração de minha vida lhe permitam alcançar. Pois já colhi dele tais frutos que, apesar de no juízo que faço de mim próprio eu procure inclinar-me mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, observando com um olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil, não deixo de lograr extraordinária satisfação do progresso que creio já ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente homens existe alguma que seja solidamente boa e importante, atrevo-me a acreditar que é aquela que escolhi.

Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor. Mas apreciaria muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a minha vida como num quadro, para que cada um possa julgá-la e que, informado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela, seja este uma nova forma de me instruir, que acrescentarei àquelas de que tenho o hábito de me utilizar.

Portanto, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a minha. Os que se aventuram a fornecer normas devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis. Mas, não propondo este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, encontrar-se-ão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser danoso a ninguém, e que todos me serão gratos por minha franqueza.

Fui instruído nas letras desde a infância, e por me haver convencido de que, por intermédio delas, poder-se-ia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las. Porém, assim que terminei esses estudos, ao cabo do qual costuma-se ser recebido na classe dos eruditos, mudei totalmente de opinião. Pois me encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. E, contudo, estudara numa das mais célebres escolas da Europa, onde imaginava que devia haver homens sábios, se é que havia em algum lugar da Terra. Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam, e mesmo não havendo me contentado com ciências que nos ensinavam, lera todos os livros que tratam daquelas que são reputadas as mais curiosas e as mais raras, que vieram a cair em minhas mãos. Além disso, eu conhecia os juízos que os outros faziam de mim; e não via de modo algum que me julgassem inferior a meus colegas, apesar de entre eles haver alguns já destinados a ocupar os lugares de nossos mestres. E, enfim, o nosso século parecia-me tão luminoso e tão fértil em bons espíritos como qualquer um dos anteriores, o que me levava a tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que não havia doutrina no mundo que fosse tal como antes me haviam feito presumir.

Apesar disso, não deixava de apreciar os exercícios com os quais se ocupam nas escolas. Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias ao entendimento dos livros antigos; que a gentileza das fábulas estimula o espírito; que as realizações notáveis das histórias o fazem crescer, e que, sendo lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual eles nos revelam apenas seus melhores pensamentos; que a eloqüência possui forças e belezas incomparáveis; que a poesia tem delicadezas e ternuras deveras encantadoras; que as matemáticas têm invenções bastante sutis, e que podem servir muito, tanto para satisfazer os curiosos quanto para facilitar todas as artes e reduzir o trabalho dos homens; que os escritos que tratam dos costumes contêm muitos ensinamentos e muitos estímulos à virtude que são muito úteis; que a teologia ensina a ganhar o céu; que a filosofia ensina a falar com coerência de todas as coisas e de se fazer admirar pelos que possuem menos erudição; que a jurisprudência, a medicina e as outras ciências proporcionam honras e riquezas àqueles que as cultivam; e, enfim, que é bom havê-las examinado a todas, até mesmo as mais eivadas de superstição e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o exato valor e evitar ser por elas enganado.

Mas eu julgava já ter gasto bastante tempo com as línguas, e também com a leitura dos livros antigos, com suas histórias e suas fábulas. Pois quase a mesma coisa que conversar com os homens de outros séculos é viajar. E bom saber alguma coisa dos hábitos de diferentes povos, para que julguemos os nossos mais justamente e não pensemos que tudo quanto é diferente dos nossos costumes é ridículo e contrário à razão, como soem fazer os que nada viram. Contudo, quando gastamos excessivo tempo em viajar, acabamos tornando-nos estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos excessivamente curiosos das coisas que se realizavam nos séculos passados, ficamos geralmente muito ignorantes das que se realizam no presente. Ademais, as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos acontecimentos que não o são, e até mesmo as histórias mais verossímeis, se não mudam nem alteram o valor das coisas para torná-las mais dignas de serem lidas, ao menos deixam de apresentar quase sempre as circunstâncias mais baixas e menos insignes, de onde resulta que o resto não parece tal qual é, e que aqueles que norteiam seus hábitos pelos exemplos que deles tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos heróis de nossos romances e a conceber propósitos que superam suas forças.

Eu estimava muito a eloquência e estava apaixonado pela poesia; mas acreditava que uma e outra fossem dons do espírito, mais do que frutos do estudo. Aqueles cujo raciocínio é mais ativo e que melhor ordenam seus pensamentos, com o intuito de torná-los claros e inteligíveis, sempre podem convencer melhor os outros daquilo que propõem, mesmo que falem somente o baixo bretão e nunca hajam aprendido retórica. E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem apresentar com o máximo de floreio e suavidade não deixariam de ser os melhores poetas, mesmo que a arte poética lhes fosse desconhecida.

Deleitava-me principalmente com as matemáticas, devido à certeza e à evidência de suas razões; mas ainda não percebia sua verdadeira aplicação, e, julgando que só serviam às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão seguros e sólidos, não se houvesse construído sobre eles nada de mais elevado. Da mesma forma que, ao contrário, eu comparava os escritos dos antigos pagãos que tratam de hábitos a magníficos palácios erigidos apenas sobre a areia e a lama. Elevam muito alto as virtudes e as apresentam como as mais dignas de estima entre todas as coisas que existem no mundo; mas não ensinam bastante a conhecê-las, e freqüentemente o que chamam com um nome tão belo não passa de uma insensibilidade, ou de um orgulho, ou de um desespero, ou de um parricídio.

Eu venerava a nossa teologia e pretendia, como qualquer um, ganhar o céu; porém, tendo aprendido, como algo muito certo, que o seu caminho não está menos franqueado aos mais ignorantes do que aos mais sábios e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão além de nossa inteligência, não me atreveria a submetê-las à debilidade de meus raciocínios, e pensava que, para empreender sua análise e obter êxito, era preciso receber alguma extraordinária assistência do céu e ser mais do que homem.

Nada direi a respeito da filosofia, exceto que, vendo que foi cultivada pelos mais elevados espíritos que viveram desde muitos séculos e que, apesar disso, nela ainda não se encontra uma única coisa a respeito da qual não haja discussão, e consequentemente que não seja duvidosa, eu não alimentava esperança alguma de acertar mais que os outros; e que, ao considerar quantas opiniões distintas, defendidas por homens eruditos, podem existir acerca de um mesmo assunto, sem que possa haver mais de uma que seja verdadeira, achava quase como falso tudo quanto era apenas provável.

A respeito das outras ciências, por tomarem seus princípios da filosofia, acreditava que nada de sólido se podia construir sobre alicerces tão pouco firmes. E nem a honra, nem o lucro que elas prometem, eram suficientes para me exortar a aprendê-las; pois graças a Deus não me sentia de maneira alguma numa condição que me obrigasse a converter a ciência num ofício, para o alívio de minha fortuna; e se bem que não desprezasse a glória como um cínico, fazia, contudo, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar obter com falsos títulos. Por fim, no que diz respeito às más doutrinas, julgava já conhecer suficientemente o que valiam, para não mais correr o risco de ser enganado, nem pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelas artimanhas ou arrogâncias dos que manifestam saber mais do que realmente sabem.

Aqui está por que, apenas a idade me possibilitou sair da submissão aos meus preceptores, abandonei totalmente o estudo das letras. E, decidindo-me a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia encontrar em mim mesmo, ou então no grande livro do mundo, aproveitei o resto de minha juventude para viajar, para ver cortes e exércitos, para freqüentar pessoas de diferentes humores e condições, para fazer variadas experiências, para pôr a mim mesmo à prova nos reencontros que o destino me propunha e, por toda parte, para refletir a respeito das coisas que se me apresentavam, a fim de que eu pudesse tirar algum proveito delas. Pois acreditava poder encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada um forma no que se refere aos negócios que lhe interessam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve penalizá-lo logo em seguida, do que naqueles que um homem de letras forma em seu gabinete a respeito de especulações que não produzem efeito algum e que não lhe acarretam outra conseqüência salvo, talvez, a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto mais afastadas do senso comum, por causa do outro tanto de espírito e artimanha que necessitou empregar no esforço de torná-las prováveis. E eu sempre tive um enorme desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro do falso, para ver claramente minhas ações e caminhar com segurança nesta vida.

A verdade é que, ao limitar-me a observar os costumes dos outros homens, pouco encontrava que me satisfizesse, pois percebia neles quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos. De forma que o maior proveito que daí tirei foi que, vendo uma quantidade de coisas que, apesar de nos parecerem muito extravagantes e ridículas, são comumente recebidas e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não acreditar com demasiada convicção em nada do que me havia sido inculcado só pelo exemplo e pelo hábito; e, dessa maneira, pouco a pouco, livrei-me de muitos enganos que ofuscam a nossa razão e nos tornam menos capazes de ouvi-la. Porém, após dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a decisão de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que iria seguir. Isso, a meu ver, trouxe-me muito melhor resultado do que se nunca tivesse me distanciado de meu país e de meus livros.

Terceira aula: texto de apoio

Baseado nas anotações de aula da professora Marilena Chaui




Esse texto procura analisar o modo como Descartes formulou o problema da dúvida hiperbólica na primeira meditação e provou como a alma é mais fácil de conhecer do que o corpo, dando início assim ao nascimento do sujeito moderno, e gerando a semente do idealismo radical e solipsista.



O texto está ambientado no final do Renascimento, e o autor, como Bacon, procurava formular a base sólida e metódica da ciência moderna, mais enxuta e prática do que a medieval, esta baseada principalmente em Aristóteles. O Renascimento é geralmente considerado um período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna; sendo assim, os autores desse período não teriam características completas de nenhuma dessas idades. No entanto, a esse tempo pertencem autores do porte de More, Erasmo, Maquiavel e outros humanistas, cientistas como Galileu e Copérnico, artistas até hoje colocados entre os melhores do mundo (principalmente os italianos e os irmãos Van Eyck, que revolucionaram a pintura com a técnica a óleo), e por isso alguns estudiosos modernos resolveram interpretar o pensamento renascentista como um sistema completo e estruturado.



O racionalismo nessa época não era tão exacerbado, apesar de a razão já ter sido considerada o principal instrumento para conhecer o mundo. O universo era considerado, segundo o conceito de Semelhança, como um todo harmônico, cuja harmonia era feita por seres que se relacionam por amizade e ódio. Essas relações são a própria causa da compreensão de uma coisa por outra, de fato, devido a esse sentimento de totalidade, uma coisa é signo de outra.



Não pretendo entrar em detalhes de como estavam divididas as atividades do saber, a filosofia natural, a magia e a alquimia. Muitas correntes estavam em desacordo com outras, e o pensamento avançava, às vezes contraditório, às vezes indo contra a estrutura social retaliadora e centenária, em busca de um conhecimento não mais cíclico teocêntrico, mas sim de domínio sobre a natureza, da virtú contra a fortuna, antropocentrado, buscando conhecer o mundo ao redor através de leis comprovadas pela razão. Deus, nesse momento, é conhecido pela teologia, o cosmos pela astrologia, e o poder pela filosofia política, cujo maior exemplo é Maquiavel. O princípio arcano (arché= início, primórdio) é então dado como secreto e incognoscível. Giordano Bruno refuta a divisão do mundo como terreno (humano) e celeste (divino), e o declara infinito. Assim, todo o lugar é centro, e nenhum lugar é circunferência. Pagou preço caro por isso. A frase Sapere audi (Ousa saber) exemplifica bem a busca ousada por respostas novas.



A razão e a fé são campos diferentes de busca. Estiveram misturadas na teologia escolástica, mas Descartes declara, em seu Discurso do método para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências, que as verdades divinas estão além dos raciocínios comuns, e é necessário assistência divina e mesmo ser mais que um simples homem para ter acesso à revelação. É nessa primeira parte do discurso do método que Descartes explicita seu descontentamento com a forma como eram conduzidos a ciência e a filosofia pelos doutos senhores de Academias e escolásticos. A atividade social era muito importante para ser considerado digno. Muitas vezes, uma pessoa já conseguia a glória independente de sua personalidade ou valor pessoal, mas sim por ocupar certo cargo importante.



Mas vamos entender melhor as críticas às teorias aristotélicas. Aristóteles havia definido dez tipos de substâncias diferentes (qualidade, quantidade, relação, tempo, posse, lugar, ação, paixão, etc.). Uma substância é aquilo que existe em si e por si, sem depender de outra coisa. Todo o resto são os modos ou atributos das substâncias. A física aristotélica estudava o movimento, sendo movimento entendido como qualquer alteração. Tudo o que é matéria se move, pois é imperfeito, e está sujeito ao devir. O imperfeito aspira à perfeição, e o perfeito não muda. Para Aristóteles, só Deus não mudava. Seu Deus era assim, imóvel para si mesmo, causa primeira de tudo, não deseja nada, pois nada lhe falta. Os corpos podem ser pesados e leves, e são animados por um movimento eterno. A principal virtude é a amizade. Os seres se modificam segundo regras fixas, estabelecidas pela causa final (aquela da finalidade da mudança de um corpo). A inteligência (entelechia) se move em direção a um fim. No aristotelismo, as causas podem ser:



1.material



2.formal



3.eficiente



4.final



Com o surgimento da nova física moderna, de Kepler, Copérnico e Galileu, o aristotelismo cai por terra, com a prova de que é a Terra que gira em torno do Sol, e não o contrário.



Apenas a causa eficiente vai permanecer na filosofia moderna, e se tornar a lei da causalidade. Na causa eficiente deve haver tanta ou mais realidade que o efeito (conforme explicado por Descartes no início da 3ª meditação), e causa e o efeito devem ser da mesma natureza. E Descartes vai declarar viva apenas três substâncias: a extensa, o pensamento, e a divina.



Com toda essa reviravolta no que até então era considerado certo, e que servia de base para a educação do europeu, Descartes resolve abandonar esse ensino, e procurar a verdade no Grande Livro do Mundo. Depois de duvidar de tudo que tinha aprendido, encontrava-se nas trevas, sozinho. Ele precisava de um método para recomeçar a construir o caminho do conhecimento, ou pelo menos as bases dele. O método dá origem a um problema fundamental da filosofia moderna: o sujeito do conhecimento. Esse sujeito serve para controlar a razão nos ditames do conhecimento. A base de toda descoberta é um axioma tirado por intuição intelectual, mas para ir além dele se deve usar da dedução. A corrente dedutiva leva em conta a ordem das razões, isto é, a ordem como as coisas se apresentam ao entendimento em seus graus de simplicidade, e não a ordem das matérias, ou a ordem das coisas nelas mesmas. Para Descartes, o mais simples era o mais absoluto, por ser o mais universal. Até a modernidade, o objeto era considerado com características que deveriam imprimir no sujeito o conhecimento verdadeiro. Com Descartes, o sujeito deve buscar, através da razão, melhorar suas características para buscar o conhecimento verdadeiro. O método para se conduzir a razão está ligado à arte (ars), que como técnica, se opõe ao acaso. Deve ter regras simples e universais, e com o menor número de regras descobrir o maior número de coisas. Descartes tira da certeza da geometria, a noção de que é preciso um procedimento para conhecer. Daí a importância fundamental da ordem e da medida. O pensamento contínuo deve buscar uma proporção contínua, e ir aumentando gradualmente seu saber. Mas para não recorrer em erro, é preciso que se entenda ser o método necessário para a busca da verdade. A razão precisa de auxílio, e de disciplina. Uma das regras é a da enumeração. Os passos da cadeia de pensamentos devem ser repetidos várias vezes, até se aproximarem da certeza da dedução. O entendimento é o único capaz de conhecer, mas é auxiliado nessa tarefa pela memória e imaginação.



Para começar um conhecimento sólido e seguro, claro e distinto, devemos livrar nossas mentes das falsas certezas. Daí ser necessária a dúvida metódica e a meditação. O ato de meditar é um recolher-se em si mesmo, onde são passadas a limpo nossas próprias falhas, recapitulando noções marcantes, se afastando assim dos vícios corporais e buscando elevar a alma. O ato de duvidar não é à toa, mas vem por razões maduramente consideradas, tanto que Descartes só o fez quando já tinha esperado tanto a hora certa, que não mais poderia fazer novamente. A dúvida cartesiana não é cética, pois o cético não acredita ser o homem capaz de ver qualquer verdade. Antes disso, a dúvida é um instrumento epistemológico, um recurso que o sujeito do conhecimento tem a seu dispor.



O que é duvidoso é aquilo a respeito do qual eu posso perguntar ser de uma maneira diferente. Ou seja, pode ser considerado possível ilusão aquilo que é inseguro. Todo o processo passível de dúvida gera uma série de conhecimentos que estão na alçada da dúvida. A dúvida não é idiossincrática, mas trata dos alicerces e bases do conhecimento. A primeira meditação é conhecida como a da dúvida hiperbólica, exagerada. A primeira dúvida é a dos sentidos. Os sentidos algumas vezes são enganosos. Para validar a dúvida dos sentidos, Descartes retoma o argumento dos sonho. Não sabe se está sonhando ou acordado. Afinal estou aqui nesta cadeira, mas muitas vezes tive impressão de algo com aparência semelhante quando estava sonhando. Ou seja, você é iludido durante o sonho achando que está acordado. Daí a importância fundamental de se perceber estar em um sonho e a começar a explorar o espaço-éter. Como todos sonham, o argumento do sonho é válido, e o meditante não está louco, como os mendigos que juram estar cobertos por ouro.



O sexto parágrafo apresenta a comparação muito interessante entre a pintura e os sonhos. Diz nosso autor que os sonhos são como quadros e pinturas, e não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro. Os pintores usam de todo o artifício para fazer uma forma inteiramente nova, mas tudo o que conseguem é combinar misturar. A palavra artifício significa justamente isso, combinar e compor com o que já existe na natureza. A palavra facio está ligada a factum (feito) e fictum, essa última ligada a fingio, ligada a ficio. O artista, através de sua técnica, cria uma ficção, uma quimera (chimaera), como no caso de sátiros e sereias. É a combinação heterogênea de uma coisa por outras coisas, é só pode ser entendida como representação, muitas vezes só pode ser dita e não pensada. A dúvida encontra seu limite nos sétimo e oitavo parágrafos. Não é permitido duvidar das naturezas simples das percepções, como o espaço e o tempo, figura, etc. A geometria e aritmética, que trata de coisas simples e universais não estão sujeitas a dúvidas. Para resolver esse impasse, Descartes diz ter a opinião (não certeza ainda na 1ª meditação) de que existe um Deus e levanta a possibilidade de ser Ele enganador: “Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar, e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de maneira diferente da que vejo?”. Tal Deus é considerado bom pelos cristãos, mas mesmo assim permite que certas vezes se engane, de tal forma que é possível pensar que talvez se engane nas coisas mais simples possíveis. Esse argumento não é novo, já o encontramos antes em alguns céticos, como Guilherme de Ockan. Se sou o efeito de uma causa divina, como poderia me enganar? Pois causa e efeito tem de ser da mesma natureza, segundo a causa eficiente. Ockam se insurgiu contra o tomismo, onde Deus cria as coisas que já estavam no seu intelecto por liberdade (contingência), ato de sua infinita vontade. Para Ockam não existe essência universal, pois o universal é abstração do singular. Esse Deus seria onipotente, e por isso cria o princípio da identidade e da não contradição. Mas se faz isso porque quer, nada o impede de criar outras coisas, como a contradição. Deus cria o singular e não o universal. Antes se sermos o todo, somos sujeitos percebendo e significando o mundo de maneira única. A explicação para não estar tudo ligado, seria o fato de que Deus pode aniquilar qualquer singular, sem afetar o geral. Aniquilar significa fazer voltar ao nada.



Descartes fala que se algumas pessoas não acreditarem em um ser tão onipotente assim, devem considerar que enganar é imperfeição, e quanto menos poderoso Deus for, mais chance terá de me enganar. As pessoas atribuíram “ter eu chegado ao estado e ao ser que possuo” :



1. a algum destino ou fatalidade. Esta é uma perspectiva histórica da filosofia , a noção de que as coisas se ligam assim é pertencente aos estóicos, e combatidas no século XVII. Cada coisa, para os estóicos, seria regida por leis naturais e necessárias, pois fazem parte da chama divina e universal. Nossa causa não é livre, mas determinada por outras. A palavra fatalidade vem de factum, que significa fado.



2. ao acaso: posição dos epicuristas, que diziam ser o mundo formado por átomos que se conectam e desconectam ao acaso.



3. por conexão das coisas, ou seja, a potência ordenada de Deus.



Continuando com a suposição de que Deus cria singulares, e não universais, quem poderá garantir que o que se vê é o que existe? Afinal, não há ordem universal.



Por prudência, Descartes resolve desconfiar da existência de um Deus assim. A prudência é uma das virtudes clássicas, e está ligada à moral. Descartes formula nesse trecho uma moral provisória.



No parágrafo onze, Descartes fala da necessidade de lembrar dos resultados de sua meditação. Pois pelo costume crenças e opiniões familiares ganharam um direito sobre ele, o de ocupar seu espírito. É apresentado o risco da heteronomia de pensamento, ao invés de uma autonomia. Para escapar disso, é necessário recordar os resultados da dúvida. O recordar é um lembrar voluntário, um esforço da mente. Já a força do costume, o hábito, é uma segunda natureza, mais falsa que a primeira. Descartes prefere, ao invés dessa heteronomia, um auto-engano que utilizará até seu pré-juízo se transformar em juízo. A meditação, por ser espiritual, tomou um rumo que diferia muito da vida prática, e agora essa vida trata de cobrar suas dívidas. Nesse ponto, é feita distinção entre agir e conhecer. A auto-enganação tem a função de fazer assombroso espectro do Deus enganador se tornar uma hipótese, mudando assim de estatura, passar de opinião forte a vaga hipótese. Fica explícito então o poderio da vontade do sujeito.



A nova hipótese é o gênio maligno, também ardiloso e enganador, um diabrete que influi em nossas sensações, enganando-nos. A diferença entre o Deus Enganador e o gênio maligno é que um age no espírito, e o outro no corpo. Mas Descartes desconfia do seu corpo, das sensações. Nada existe e o corpo também não, assim o gênio maligno também perde importância.



Descartes termina a primeira meditação demonstrando preguiça, um dos sete pecados capitais. É como um escravo que pensa ser livre. Com a meditação interrompeu-se o fluxo das coisas ilusórias, e hipóteses assustadoras foram levantadas na mente do meditante. Mas a segunda natureza soterra esse movimento de interiorização de busca da primeira natureza. Isso lembra os prisioneiros da caverna de Platão, que acreditavam serem livres e estarem vendo tudo o que existe, e um deles se solta em busca da luz, simbolizada pelo Sol. É no Fédon que Platão diz que a luz divina se transforma em matéria sem luz. Para os cristãos, Deus é a luz e a alma pode receber essa luz (lux-luz , lumem-objeto iluminado), que pode ser natural (razão) ou supranatural, concedida pela graça divina (fé). Já para os neoplatônicos, o Uno (incognoscível e eterno), emana luz, o intelecto, da onde saí o inteligível, que emana as coisas. É de se notar que a primeira meditação termina de forma a exigir a segunda.



A afirmação de que o espírito é mais fácil de conhecer do que o corpo foi escandalosa no ponto de vista da tradição filosófica. Essa afirmação inaugura a filosofia moderna. Na tradição filosófica, o espírito era mais digno, mas não mais fácil de se conhecer do que o corpo. A 2ª meditação começa com uma recapitulação da anterior, e passa para um sentimento de angústia. Descartes diz não ser mais capaz de esquecer as dúvidas a que chegara no dia anterior, e se sente como em um abismo. Nesse ponto, há uma parada: ou a nova ciência surgirá, ou o ceticismo estará justificado.



Descartes faz uma analogia entre si próprio e Arquimedes. Arquimedes precisava apenas de um ponto fixo, para que, usando a alavanca, conseguisse mover o mundo de lugar. Descartes procura ao menos uma verdade que seja certa e indubitável. Com a geometrização do espaço e a infinitização do universo, havíamos perdido o centro. Descartes procurava um ponto fixo, ou seja, uma base sólida onde pudesse erguer seu palácio do conhecimento. Pergunta Descartes: “O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que não há nada de certo”. Descartes começa a hesitar, coisa que antes não havia acontecido. Nesse recurso literário, expõe sua dúvida sobre se depender ou não do corpo para existir. Porém, a brecha é aberta, quando ele descobre que para receber a ação do Deus Enganador, precisa ser. Ele não pode deixar de ser enquanto receber a ação do Deus Enganador. Essa é uma primeira afirmação verdadeira: “Eu sou, existo”. Ela é verdadeira toda a vez que a concebo em meu espírito. Ou seja, a frase é verdadeira em um sentido atual, não potencial. Ele ainda não demonstrou nada além disso, e deve ter cuidado para não atribuir ao ser outra coisa que não ele mesmo. Assim, para conservar a primeira evidência, é preciso atenção.



Conhecer está ligado a perceber, que está ligado a ver. Esse ver pode ser com os olhos do corpo e com os olhos do espírito. Com os olhos do espírito eu tenho uma intuição intelectual, vejo com certeza, entendo, vejo a coisa na sua totalidade. A mathema acreditava que o espírito podia apreender de uma só vez o objeto em sua inteireza. E quando se vê completamente, se tem a evidência. Já a atenção é a atividade intelectual que busca a evidência, a afirmação de que só conhecemos o que é claro e distinto, e a exigência de que devemos começar por coisas mais simples. Para o juízo não cair em erro, é necessário a atenção. Mas o que é esse “eu que existe”? Esta é uma indagação metafísica. Descartes refuta a concepção clássica de homem por Aristóteles e os tomistas, a de que o homem é um animal racional. Pois perguntando-se o que é racional, cairia-se em questões mais complicadas e indesejáveis no momento.



A primeira evidência veio enquanto o meditante estava pensando, e se torna verdadeira toda vez que em um ato atual, ele a concebe em seu espírito. As coisas vieram conforme as ordens do pensamento, e ele foi quem deu a medida. Descartes diz- e aí ele volta o verbo ao passado- que considerava o corpo uma máquina composta de ossos e carne. A alma seria feita de éter, um corpo sutil, rarefeito, algo como um vento ou uma flâmula tênue. Para Platão, alma podia ser temperante (desejos), irascível (coração) e racional. Para os estóicos, era um sopro sutil. Para Aristóteles, há quatro almas: vegetativa, locomotiva, sensitiva e intelectiva. Descartes fica com o quarto tipo de alma, o pensamento. O pensamento é, para Descartes, ao mesmo tempo alma e espírito. Sob a mira do Ser ardiloso e poderoso que emprega todas a sua indústria a enganar, Descartes diz não poder estar tão certo da natureza das coisas corpóreas. Depois de falar o que não pertence ao seu ser, Descartes dá a resposta para a pergunta “o que sou?”, que é: “uma coisa que pensa” (res cogitans). E uma coisa que pensa é uma coisa que concebe, que duvida, que afirma, nega, quer, imagina e que sente.



Nesse ponto interromperei a exposição pois já atingi o objetivo proposto. A certeza do Cogito cartesiano inaugura o sujeito moderno, dando importância fundamental ao ser que pensa, em oposição a um Deus que pode enganar-me. A força do pensamento subjetivo é tal que Descartes chega a duvidar que as pessoas que ele vê andando vestidas na rua não sejam autômatos movidos por mola. Tal afirmação tem um tom solipsista. Foi exposto também como é problematizado o sujeito do conhecimento, que com ordem e medida, procura conhecer as coisas em sua inteireza. Descartes falará então das outras duas substâncias, a extensa, onde se tornou famoso seu exemplo da cera que muda muito mas não deixa de ser extensa, e a divina. Tentará provar que Deus existe e não é mal, mas pelo contrário, ajuda a transpor o abismo entre o sujeito e o objeto.





BIBLIOGRAFIA



1. Anotações da aula da professora Marilena de Souza Chauí



2. Descartes, René. Volume da coleção Os Pensadores, editora Nova Cultural, São Paulo SP. Livro usados nesse volume: Discurso do método para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências e Meditações concernentes à Primeira Filosofia nas quais a existência de Deus e a Distinção Real entre a Alma e o Corpo do homem são demonstradas



3.Cottinghan, John. Dicionário Descartes Editora Zahar



4.Chauí, Marilena Primeira filosofia Artigo sobre filosofia moderna



5. Descartes, René. Regras para a direção do espírito. Edições 70. Portugal, Lisboa.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Segunda aula

Vimos na última aula que para entender o que chamamos de realidade, precisamos lançar mão de algo como tempo e espaço. Mas não só o tempo e o espaço são peculiares a esse entendimento, também o número, e tudo o mais que de qualquer modo nos permit entender ou interpretar a realidade. Mas por que precisamos então desses artifícios para entender a realidade? Melhor ainda, por que precisamos entender a realidade? Vale lembrar que mesmo quando não realizamos nenhum esforço para compreendê-la, ou seja, quando apenas seguimos o fluxo das interpretações já vigentes, ainda assim temos papel ativo na interpretação do mundo e participamos dessa mesma interpretação. Para começarmos a pensar isso, vamos ler um poema de Mário Quintana:




XXVIII. Do "HOMO SAPIENS"



E eis que, ante a infinita Criação,

O próprio Deus parou, desconcertado e mudo!

Num sorriso, inventou o homo sapiens, então,

Para que lhe explicasse aquilo tudo...





Daí depreende-se que nem mesmo um ser divino, no caso, Deus, compreende o mundo, a criação. Ou melhor, nem ele precisa compreender o mundo. A possibiliade de explicação, de entendimento está disposta para o homem, não para o animal nem para Deus. Mas por que, repito a pergunta, precisamos entender o mundo, por que não fazemos como Fernando Pessoa, quando diz:



Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo.Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é ama

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência não pensar...



Há, entre nós e a realidade, um abismo. Não estamos inseridos nela como um animal, como uma planta, nem como qualquer divindade imaginável. Há uma intermediação: o pensamento. Ao olharmos, não reconhecemos de pronto, precisamos reconstruir tudo. Essa reconstrução, é, contudo, uma entre várias interpretações possíveis. Isso acontece de tal modo que parecemos não pertencer a esse lugar, parecemos apátridas em todo lugar. Como se estivéssemos longe de casa aonde quer que fôssemos. Então precisamos encontrar tal casa. Esse encontro se dá como criação duma interpretação de mundo. Uma em que as coisas vistas, sentidas se encaixem. Quanto mais perfeito o encaixe, mais apaziguados ficamos, mais nos sentimos confortáveis, como se estivéssemos em casa.

Não obstante, por ser uma sobreposição, por ser uma interpretação, não o mundo mesmo, não as coisas mesmas, vez por outra percebemos que há algo errado com essa interpretação, que ela poderia ser outra, ou que ela simplesmente não deveria se dar. Percebemos então que a interpretação vigente do mundo possui falhas, que a todo momento a realidade deixa claro pra você que não é assim. Percebemos que, em vez de compreendermos o mundo, criamos um outro mundo que compreendamos. Isso está muito bem expresso no seguinte poema de Mário Quintana:



VIII. Dos MUNDOS



Deus criou este mundo. O homem, todavia,

Entrou a desconfiar, cogitabundo...

Decerto não gostou lá muito do que via...

E foi logo inventando o outro mundo.







Há um outro aspecto no poema que não trataremos aqui. Esse "não gostou lá muito do que via" aponta para um não querer ver o mundo tal qual é. Por ora, não pensaremos nisso. Vale para nós aqui muito mais atentar para o fato de que inventamos outro mundo porque não compreendemos o mundo tal qual é, mas esse mundo a todo instante aparece nas frestas, na falhas do inventado por nós. Como então termos acesso ao mundo tal como ele é? Essa tarefa é dificílima. Alguns duvidam mesmo que seja possível ter acesso ao mundo tal como ele é. Acreditam que só é possível uma aproximação. De qualquer forma, mesmo essa aproximação, ou o exercício de aproximação, exige uma coisa chamada atitude crítica.



Podemos dividir a atitude crítica em duas etapas:



1 suspender os preconceitos, os prejuízos, os fatos e as ideias da experiência cotidiana, o que todo mundo diz e pensa.



2 interrogar sobre o que as coisas, as ideias, os fatos, as situações são.

sábado, 7 de agosto de 2010

Aos alunos com carinho


de Cláudia Castro
Professora do departamento de Filosofia da PUC-Rio


Comecei a ensinar ainda menina. Primeiro, para as almofadas de meu quarto de criança. Depois, quando apenas alguns anos me separavam dos olhos curiosos que tinha a minha frente. Passados quinze anos como professora nesta universidade, talvez possa perguntar: o que é ensinar filosofia? Há uma grande diferença entre o ensino que hoje realizo e minha brincadeira infantil de falar com as almofadas? Não seria esse prazer primevo a antecipação, já a elaboração da tarefa que um dia iria realizar e à qual dedicaria minha vida inteiramente? Hoje vejo que sim. Porque no trabalho de formação filosófica não é o conteúdo o que mais importa, aquilo que podemos chamar de saber e que traz consigo, freqüentemente, um poder mutilante e nefasto. Em seu sentido mais elevado, ensinar filosofia (se isto é possível) é, ao mesmo tempo, ter o privilégio de viver e suscitar uma experiência de parada, de interrupção no curso das atividades práticas e automáticas de nossas vidas, para que um pouco de ar fresco, livre, possa atravessar.
Desde sua origem, os grandes pensadores concluíram que o pensamento puro é desprovido de utilidade. Ele é um momento de crítica, de indagação sobre o que somos e desejamos profundamente. E o professor enfrenta, a cada aula, o desafio de despertar esse sutil questionamento.
Ensinar é, antes de tudo, amar. Entrar num movimento em que nos despojamos de tudo que nos caracteriza como um sujeito pequeno, “humano demasiado humano”, nas palavras de Nietzsche, e, nessa abertura, pensar-com, pensar junto aos espíritos com os quais o acaso nos colocou em relação. Espíritos que também se abrem para o pensamento que, de fora, os transforma, irreversivelmente.
Assim, o trabalho do professor – que se inicia do zero a cada vez que ele adentra o espaço sagrado da sala, com as carteiras e a sua mesa, o quadro e o giz – se assemelha ao de um baloeiro que ensaia fazer subir um balão. Pois uma aula é como um balão. Se é boa, nos leva ao céu, para além de nós mesmos, até o reino mais perfeito da liberdade. Quando o balão consegue subir? Ele sobe se, inexplicavelmente, tanto o professor quanto os alunos, encantados com a magia misteriosa das palavras, tocam o insondável: a pergunta, sem resposta, sobre o sentido de nossas vidas.







quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Primeira aula

Alegoria da caverna de Platão



Todos os dias travamos uma série de relações com outras pessoas e com as coisas do mundo. Lidamos com coisas das quais gostamos, das quais não gostamos; perguntamos pelas horas, pela data; dizemos ser verdade o que acabamos de dizer, nos equivocamos, mentimos etc. Em geral, para nada disso precisamos pensar, ou seja, realizamos todas essas tarefas automaticamente. Já sabemos de antemão do que gostar, como medir o tempo, distinguir a verdade da mentira, reconhecer um erro, quando e por que optar por mentir etc. Tudo isso aprendemos no decorrer de nossa educação. Herdamos essas informações de nossa cultura. Nossos pais, nossos amigos, ou seja, a sociedade em que vivemos, nos ensina como agir cotidianamente. Estamos mergulhados numa rede de significações, e isso se chama bom senso. Esse mergulho cego é necessário para nos comunicarmos. Os pertencentes a certa comunidade compartilham da mesma rede de significações, por isso se entendem. Essa relação com o mundo é imediata e é a comum para todos nós na grande maioria das vezes. Lidamos, portanto, com o entendimento das coisas e pessoas em geral de modo passivo. Não estabelecemos uma investigação profunda das características morais e psíquicas de alguém para somente aí dizermos se gostamos ou não da pessoa, assim como não questionamos a todo momento o que realmente significa todas as crenças presentes em nossas conversas cotidianas para então conversarmos. Não obstante, se por algum motivo começamos a perceber ou desconfiar de que "as coisas" não são bem assim, ficamos mas atentos, contemplativos, a espera de descobrir algo que não se sabe ainda o que é. Essa "desconfiança" de que há algo errado ou, pelo menos, estranho em tudo o que vemos representa uma crise no modo de entendermos as coisas. O referido mergulho na rede de significações cotidianas e a crise resultante do colocar em questão essa mesma rede são muito bem ilustrados pelo mito da caverna de Platão:




Trata-se de um diálogo metafórico onde as falas na primeira pessoa são de Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimato, são os irmãos mais novos de Platão. No diálogo, é dada ênfase ao processo de conhecimento, mostrando a visão de mundo do ignorante, que vive de senso comum, e do filósofo, na sua empreitada rumo à verdade.



Mito da Caverna (resumo)





Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração, seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente, não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se passa no interior. A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Entre ela e os prisioneiros - no exterior, portanto - há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes. Ao longo dessa mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas as coisas.

Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam. Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são imagens (estatuetas de coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna. Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda luminosidade possível é a que reina na caverna. Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria os outros seres humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade, começaria a caminhar, dirigi ndo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho ascendente, nele adentraria. Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se com a claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho, enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras de imagens (as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora está contemplando a própria realidade. Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna, ficaria

desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los. Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não acreditariam em suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas, tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo. Mas, quem sabe, alguns poderiam ouvi-lo e, contra a vontade dos demais, também decidissem sair da caverna rumo à realidade.



O que é a caverna? O mundo em que vivemos. Que são as sombras das estatuetas? As coisas materiais e sensoriais que percebemos. Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna? O filósofo. O que é a luz exterior do sol? A luz da verdade. O que é o mundo exterior? O mundo das idéias verdadeiras ou da verdadeira realidade. Qual o instrumento que liberta o filósofo e com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros? A dialética. O que é a visão do mundo real iluminado? A Filosofia. Por que os prisioneiros zombam, espancam e matam o filósofo (Platão está se referindo à condenação de Sócrates à morte pela assembléia ateniense)? Porque imaginam que o mundo sensível é o mundo real e o único verdadeiro.