sábado, 28 de novembro de 2009

Capitalismo

A. C. Grayling
Birkbeck College London
Tradução de Maria de Fátima St. Aubyn
O problema com o sistema de lucro sempre foi ser substancialmente pouco lucrativo para a maioria das pessoas.

E. B. White
Poucas pessoas afirmariam, pelo menos abertamente, não desejar que todas as sociedades fossem justas e decentes. Claro que é mais fácil dizer que as sociedades deviam ser assim do que torná-las assim, especialmente numa era de capitalismo de mercado livre mundial que entrega a boa vida à maior parte dos residentes nos países industrializados avançados — países que, por conseguinte, são também o centro do poder e influência mundiais, o que faz não constituir surpresa que as virtudes do seu modo de vida económico surjam como inquestionavelmente superiores às alternativas. No Ocidente rico, é agora ortodoxo pensar que a ideologia do mercado livre ganhou a discussão — e, portanto, compreensivelmente, que o futuro, tal como o presente, lhe pertence — daí a declaração de Francis Fukuyama de que “a história chegou ao fim”. As vozes discordantes, por muito eloquentes e bem informadas, mal se ouvem no meio da autoconfiança retumbante desta opinião. Mas a história contada pelas vozes discordantes é profundamente perturbante e aponta argumentos poderosos a favor de uma maior justiça e sustentabilidade na economia mundial.

O capitalismo precisa do crescimento contínuo da produção e, portanto, do consumo, para se sustentar a si mesmo. Os benefícios daí colhidos sob a forma de tecnologia e melhoria das condições de vida são óbvios e palpáveis no Ocidente rico. Mas, dizem as vozes discordantes, o preço está a revelar-se demasiado elevado, especialmente em termos de danos infligidos ao ambiente, da dívida paralisante do terceiro mundo, das disparidades insustentáveis entre ricos e pobres, e do efeito destrutivo provocado nas comunidades pela transformação das pessoas em bens e das relações sociais em transacções comerciais. As vozes discordantes conseguem citar incessante e perturbadoramente números sobre danos ambientais, pobreza, desperdício e exploração do terceiro mundo. Os factos sobre a horrenda perda anual de área da floresta virgem, as crianças asiáticas que cosem, por uns poucos cêntimos diários, as bolas de futebol com que as nossas próprias crianças brincam e as fomes dos países do terceiro mundo devidas à substituição da agricultura de subsistência por culturas de exportação, são já bem conhecidos. Menos conhecidos são factos como o homem mais rico do México ter mais dinheiro do que os dezassete milhões de seus compatriotas mais pobres todos juntos e os pagamentos anuais das dívidas de muitos países pobres ultrapassarem em muito o que eles podem gastar em saúde e educação. Considerações deste tipo revelam de forma violenta a injustiça e instabilidade da ordem económica mundial, obrigando-nos a perguntar não se deverá esta ser alterada, mas como.

Os defensores do capitalismo de mercado mundial fazem assentar a sua fé em duas coisas: a capacidade que os próprios mercados têm de reparar, no longo prazo, as piores iniquidades e desigualdades que geram, e a “solução técnica”, na qual a inovação tecnológica futura resolverá os problemas criados pelas tecnologia e indústria actuais. Por exemplo: os automóveis e as lâmpadas eléctricas do futuro consumirão menos energia do que os actuais e, portanto, não importa que actualmente estejamos a consumir os nossos recursos combustíveis a uma velocidade que parece insustentável.

Os críticos não se impressionam com estes argumentos. Afirmam que o mercado existe para que aqueles que controlam os recursos possam colher lucros, o que constitui o seu único objectivo e raison d›être. Ao deixar o mundo nas mãos das forças impessoais da oferta e da procura, o mercado ignora as consequências que isso tem naqueles, muitos, que meramente servem os seus interesses, não partilhando os seus lucros. Para alcançar a justiça social, dizem eles, precisamos de uma economia que coloque no seu centro os interesses humanos. Esta economia incorporaria princípios de protecção ambiental e cultural, de justiça económica para indivíduos e povos, e de regulamentação da actividade de empresas multinacionais.

Foram avançadas muitas teorias relativas a uma actividade económica sustentável, e, por conseguinte, mais contida e equilibrada, mas nenhuma deverá ser adoptada enquanto a actual ordem conceder tamanhos lucros a uns e revelar tantos atractivos a outros. Qualquer alteração no sentido de inverter as tendências desenfreadas da ordem contemporânea exigiria alterações substanciais de atitudes e práticas, de forma que é difícil ver como isso poderia acontecer, a menos que alguma catástrofe mundial nos obrigasse a fazê-lo.

Algumas pessoas afirmam que só um regresso às pequenas comunidades autogovernadas oferece alguma esperança de um futuro mais justo e sustentável. Têm em mente a “cultura campesina” regional, auto-sustentada, que tem existido desde os tempos primitivos — combinação social descrita por um historiador como sendo “o maior feito da humanidade”. Mas isto revela a debilidade fatal existente em todos os argumentos deste género: recomendar, como reacção às preocupações genuínas suscitadas pelos piores aspectos do capitalismo de mercado livre, um regresso à vida campesina, ou, na verdade, a qualquer sistema de consumo reduzido, crescimento limitado, estase e contenção, não pode ser encarado como uma opção séria, não apenas por aqueles, relativamente poucos, que retiram benefícios do capitalismo, mas também por aqueles, muito numerosos, que aspiram a juntar-se-lhes.

Os críticos da economia do mundo actual estão sujeitos a ser tendenciosos nas suas críticas, pois há verdadeiramente muito a deplorar nos seus efeitos sobre o mundo natural e social e na sua injustiça chocante. Têm razão, ao dizer que é necessário fazer alguma coisa. Mas, como estas propostas insatisfatórias ilustram, ainda se aguarda a apresentação de uma saída convincente para o dilema.

No entanto, também há aqueles que não só defendem como até enaltecem a ordem do mercado livre e o consumismo que a alimenta. A ortodoxia sociológica afirma que o consumismo equivale a opressão: o marketing habilidoso tem-nos manipulado, diz a ortodoxia, deixando-nos num papel de vítimas passivas, consumindo perpetuamente e sem objectivo quantidades sempre crescentes, a mando de uma indústria publicitária que nos cria falsos desejos, levando-nos a acreditar que comprar um objecto equivale a comprar a felicidade. Os estudos acerca do consumismo e daquilo que ele envolve — marketing, marcas, moda, compras, embalagens, lixo, poluição, rivalidade social, mentalidade do descartável e transformação do valor em bem — constituem uma leitura perturbante porque sugerem que os mecanismos de persuasão e coerção subjacentes ao capitalismo são fundamentalmente malignos.

A ortodoxia diz-nos que os executivos do marketing transformam-nos em criaturas ansiosas mas dóceis, a quem falsamente se faz crer que o caminho para o paraíso passa por comprar coisas. Imensos comentadores distintos — entre eles Thorstein Veblen, John Kenneth Galbraith, Vance Packard, Ralph Nader e os filósofos da Escola de Frankfurt — condenam o desperdício, a sandice, a falsa consciência da sociedade consumista e a sua transformação das pessoas em vítimas, que descrevem como uma conspiração que nos empurra para o trabalho, para podermos comprar as migalhas de prazer que o sistema deixa cair das mesas daqueles cujos produtos desnecessários compramos. E, entretanto, somos inundados de lixo e poluição, enquanto nos sentamos à luz tremeluzente dos anúncios televisivos, comendo os nossos jantares insalubres preparados nos microondas.

Contudo, a informação que apoia esta ortodoxia é ambígua. Outra informação muito diferente indica que os consumidores são inteligentes nas suas escolhas e que as compras constituem uma profunda fonte de significado no mundo moderno. A ortodoxia parece implicar que, se os anunciantes deixassem as pessoas em paz, elas começariam todas a ler Wittgenstein e a ouvir Mahler. Pois bem, não o fariam. Elas querem Coisas, querem Objectos, querem comprar e possuir. E, como sugerem as leis da oferta e da procura, é o consumidor que aponta o caminho, ao passo que os produtores e os anunciantes seguem no seu encalço, oferecendo as consolações e as salvações (a linguagem religiosa vem naturalmente à ideia) que as marcas e as alegrias da propriedade fornecem.

Portanto, talvez o amor pelo consumo manifestado pelos consumidores não seja tão desprezível. Os defensores deste afirmam que consumir é a paixão e a criatividade da vida contemporânea. É através da compra e posse de Coisas, dizem eles, que nos definimos a nós próprios, interpretamos a nossa sociedade e conferimos coerência às nossas vidas. Não desejamos guiar um automóvel, mas sim um Ferrari; não desejamos beber champanhe, mas sim Veuve Clicquot; não desejamos vestir um fato, mas sim um fato Armani. Possuí-los confere-nos significado. A linguagem das marcas, produtos e serviços é a linguagem partilhada da nossa comunidade. Os logótipos e anúncios são os emblemas culturais da nossa época, sinais que nos ajudam a andar pelo mundo e a avaliar aquilo que nele encontramos. Tanto a linguagem como as imagens nos oferecem aquilo que em tempos a religião ofereceu — uma estrutura comum. Mas, enquanto elo comunitário, dizem os seus defensores, é mais democrático e igualitário: os consumidores não são idiotas, não são receptores passivos de dogmas pregados por um clero; são os sacerdotes de si mesmos, sabem o que querem, e estão a obtê-lo.

Consideremos a lógica das marcas. Por que razão as pessoas compram e usam marcas dispendiosamente reconhecíveis? Porque isso lhes permite reclamar uma posição social, prestígio, confiança e faculdade de resolução. Essa é a chave do consumismo: a aquisição dos veículos tangíveis compra precisamente a posse desses intangíveis.

O argumento de que o consumo não constitui opressão — que os consumidores são felizes, que o consumo confere satisfação e dá sentido à vida — é exaltantemente robusto. Mas é difícil não deixar de pensar que, se a felicidade é o que interessa, seria possível alcançar o mesmo grau de felicidade mais rápida e economicamente colocando uma droga adequada nas reservas aquíferas. E deixa de fora uma questão tão familiar que se tornou há muito o lugar-comum dos lugares-comuns: de todas as coisas que vale a pena ter na vida — nomeadamente gentileza, sabedoria e afectos humanos —, nenhuma se encontra à venda nos centros comerciais do mundo.

A. C. Grayling

Retirado do livro O Significado das Coisas, de A. C. Grayling (Gradiva, 2003)

Fonte: http://criticanarede.com/html/capitalismo.html

terça-feira, 24 de novembro de 2009

CARNE DE CACHORRO: POR QUE NÃO?

16/11/2009

Li um texto interessantíssimo no blog de André Forastieri, situado no portal R7. Ele trata da carne de cachorro como alimento e, mais ainda, pergunta se haveria algum crime em seu consumo. Segue trecho:

"Eu comeria cachorro? Fácil. Nunca tive oportunidade, mas se pintar, não recuso. E tem um mundo subterrâneo de comedores de cachorro em Brasil. Ontem, por exemplo, sessenta quilos de carne de cachorro foram apreendidas em Suzano, aqui na grande São Paulo. Um casal pegava os bichos na rua, engordava, abatia e vendida para dois restaurantes aqui do Bom Retiro. O casal e quatro coreanos, responsáveis pelos restaurantes, foram presos. Presos por quê? Qual a acusação? É ilegal comer cachorro no Brasil? Pô, aqui se come buchada de bode, cobra, tartaruga. Na França se come cavalo e escargot. Qual o problema?" (grifos nossos)

Sim, vale repetir as perguntas do blogueiro: QUAL O PROBLEMA? Qual o crime? E vamos aos jornalistas. No mesmo portal R7, da Record, temos uma reportagem, em vídeo, que noticia a prisão do casal envolvido no "abatedouro canino". O crime? Não há informação. O jornalismo, ali, dá vez ao teor sensacionalista (não consegui passar o video pra cá).

Agora, vamos ao G1, da Globo. O portal tenta ser mais técnico, mas faz lambança. Afinal, alegar que o "ilícito" corresponde ao descumprimento de uma Lei Estadual é pisar na bola, já que é prerrogativa exclusiva da União legislar sobre matéria penal (daí a redundância de quando dizem "crime federal" etc.).

De todo modo, dão uma pista: "O casal e os proprietários dos restaurantes vão responder por crime contra a fauna, contra o meio ambiente e por formação de quadrilha. Os restaurantes deverão ser fechados pela Vigilância Sanitária." - vejam o vídeo lá na página, também.

Enfim
O policial diz que serão indiciados por crime de "formação de quadrilha ou bando". Ok. Mas uma quadrilha, para ser configurada como tal, precisa cometer algum crime. QUAL FOI O ILÍCITO COMETIDO?

Aparentemente, serão pegos pela legislação ambiental, com o agravante de prejuízo à saúde pública, nos termos da Lei 9605/98:

"Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal."

Sobre o agravante:

"Art. 6º Para imposição e gradação da penalidade, a autoridade competente observará:

I - a gravidade do fato, tendo em vista os motivos da infração e suas conseqüências para a saúde pública e para o meio ambiente;"

Mas agora vamos supor o seguinte: um abatedouro SEM maus-tratos, sem mutilação (que só pode ser considerada como tal enquanto os animais estiverem vivos) e que respeite TODAS AS NORMAS DE SAÚDE PÚBLICA E MEIO-AMBIENTE. Qual a diferença dele para um abatedouro bovino, suíno, caprino etc.?

Se criarem uma lei para proteger o cão, é preciso que se crie alguma para proteger o boi, o porco, a cabra, o carneiro e todos os demais bichinhos bonitos que os carnívoros devoramos. Ah, sim, nunca comi e provavelmente jamais comerei carne de cachorro. Mas como todas as demais - inclusive peixes e aves (também lindos e fofos) -, de modo que não faz sentido condenar os apreciadores da carne bovina.

Quando se estipula que o ser humano tem a prerrogativa de comer carne, há o seguinte estabelecimento: somos uma espécie privilegiada pela lei, ou seja, podemos comer os outros animais. A exceção legal é feita às espécies em via de extinção.

De resto, há toda sorte de fazendas, abatedouros, frigoríficos e revendedores dos mais variados tipos de carnes. E também animais de estimação servidos como alimento, dos fofinhos aos mais exóticos: coelhos, galinhas, lagartos, cobras, peixinhos etc.

Alguém tem uma explicação lógica para eventual proibição do consumo de carne canina no Brasil? E, estabelecendo-se de forma asseada e obedecendo todos os rigores da vigilância sanitária, um restaurante de carne de cachorro não poderia funcionar? Por quê?

Fonte: http://www.interney.net/blogs/imprensamarrom/

CUIDADO COM ALGUNS DEFENSORES DOS CÃES!

17/11/2009
Eles são exceção à regra, é verdade, mas existem e seguramente todos já devem ter visto ou ao menos sabido de sua existência. Falo aqui dos supostamente "amantes" dos cães, mas cujos comportamentos contradizem o amor alegado. Exemplos não faltam.

Vejam os moradores dos trópicos, mas donos de cães típicos dos países frios, muito frios. Se não for sadismo, é imbecilidade. Como alegam amor, não resta outra: são idiotas. Lembro de ver, em Ubatuba e sob um calor saariano, famílias passeando com cachorros da raça Husky, típica da Sibéria (aquela região bem quentinha e equatorial da Rússia).

E o que não dizer dos proprietários de cães de caça mantidos em ambientes fechados, longe de qualquer atividade parecida com o hábito natural de sua raça? Dar uma voltinha para fazer pipi, convenhamos, é uma demonstração parecida com aquela devotada aos que estão sob prisão perpétua e passam duas ou três horas no pátio da penitenciária para tomar um "solzinho".

Além disso, há casos realmente extremos, de quem mantém num apartamento minúsculo espécimes de raças imensas, como Rottweiler e quejandos. Não adianta fazer cafuné, é mais do que óbvio o desconforto do animal. É evidente sua (dele) serventia para aplacar a carência afetiva do dono e não o amor deste último em relação aos bichos em geral ou mesmo aos cães em especial.

Tudo bobagem.

E então venho aqui repetir uma velha questão: se comem bois e bezerros, porcos e leitões, bodes e cabritos, ovelhas e cordeiros, e até coelhinhos, tudo dentro dos hábitos gastronômicos ocidentais, enfim, por que razão lógica seria PROIBIDO comer carne de cachorro?

São esses os "defensores" dos cães? Essas pessoas estão efetivamente preocupadas com o bem-estar dessa categoria animal?

Não duvido – vale repetir – das boas intenções dos VERDADEIROS defensores dos cães. Sei que eles existem. Mas só dou ouvidos a seus argumentos quando e se também defenderem o fim do abate de todos os demais bichinhos. Não faz o menor sentido protestar contra o hábito oriental de se comer cachorro e degustar um bife de vaca – às vezes, ao mesmo tempo.

Ah, sim: não é "nossa cultura"? Sim, não é. Como o sushi não era, e nem mesmo a pizza. Se for assim, fiquemos com os pratos dos índios, ou no mais das vezes aqueles dos colonizadores de Portugal. Ridículo, né?

E, claro, há mercado. Tanto que os tais abatedouros existem de forma clandestina. Também clandestinamente, existem restaurantes.

O mínimo que precisamos fazer é respeitar essa cultura – mesmo tendo nojo ou repulsa quanto à carne degustada (eu mesmo, por exemplo, tenho nojo de carne de rã). E se for para não aceitar quem se alimenta de carne canina, a lógica deve prevalecer: nada de carne. Nenhuma. Todas as espécies animais seriam proibidas.

Mas, ainda assim, continuo com medo de muitos defensores ardorosos dos cães. Sei que são casos excepcionais, mas não são poucos em números absolutos. Cachorros de países frios aqui no Brasil tropical, animais de caça ou até corrida em espaços impróprios, bichos imensos em pequenos apartamentos.

Isso é gostar? O que eles fazem quando odeiam um animal?

Revisão: Hellen Guareschi

Fonte:http://www.interney.net/blogs/imprensamarrom/

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Texto de apoio: Justiça (turmas de direito)

(gr. ôiKouoaúvri; lat. Justitia; in. Justice, fr. Justice, al. Gerechtigkeit; it. Giustizià). Em geral, a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem. Podem-se distinguir dois significados principais: l: J. como conformidade da conduta a uma norma; 2: J. como eficiência de uma norma (ou de um sistema de normas), entendendo-se por eficiência de uma norma certa capacidade de possibilitar as relações entre os homens. No primeiro significado, esse conceito é empregado para julgar o comportamento humano ou a pessoa humana (esta última, com base em seu comportamento). No segundo significado, é empregado para julgar as normas que regulam o próprio comportamento. A problemática histórica dos dois conceitos, ainda que frequentemente interligada e confundida, é completamente diferente. No primeiro significado, a J. é a conformidade de um comportamento (ou de uma pessoa em seu comportamento) a uma norma; no âmbito deste significado, a polêmica filosófica, jurídica e política versa apenas sobre a natureza da norma que é tomada em exame. Esta pode ser de fato a norma natural, a norma divina ou a norma positiva. Aristóteles diz: "Uma vez que o transgressor da lei é injusto, enquanto é justo quem se conforma à lei, é evidente que tudo aquilo que se conforma à lei é de alguma forma justo: de fato, as coisas estabelecidas pelo poder legislativo conformam-se à lei e dizemos que cada uma delas é justa" (Et. nic, V, 1, 1129 b 11). Neste sentido, segundo Aristóteles, a J. é a virtude integral e perfeita: integral porque compreende todas as outras, perfeita porque quem a possui pode utilizá-la não só em relação a si mesmo, mas também em relação aos outros (Ibid., 1129 b 30). Mas também as duas formas da J. particular que Aristóteles enumera, que são a distributiva (v. DiSTRiBunvo) e a corretiva ou comutativa (v. COMUTATIVO), consistem em conformar-se a normas, mais precisamente às que prescrevem a igualdade entre os méritos e as vantagens ou entre as vantagens e as desvantagens de cada um. A definição de J. feita por Ulpiano, adotada pelos jurisconsultos romanos (Dig., I, 1, 10) como "vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu" é outra maneira de expressar a noção de justiça como conformidade à lei, visto pressupor que o que cabe a cada um já está determinado por uma lei. Kelsen tachou essa definição de tautológica por não conter indicação alguma sobre o que é o "seu" de cada um (.General Theory of Law and State, 1945, I, I, A, c, 2); na realidade, prescreve apenas a conformidade a uma lei ou regra que estabeleça exatamente aquilo que cabe a cada um. A noção de conformidade à lei como definição de J. é uma constante mesmo naqueles que se opõem ao conceito tradicional de justiça. Assim, Hobbes afirma que a J. consiste simplesmente na manutenção dos pactos, e que, portanto, onde não há Estado como poder coercitivo que assegure a manutenção dos pactos, não existe J. nem injustiça (Leviath., I, 15). Mas também neste caso a J. não passa de conformidade a uma regra, mesmo em se tratando de uma regra simplesmente pactuada. Mesmo a interpretação feita por Kant da definição romana reduz a J. ao respeito a uma norma já estabelecida: "Se aquela fórmula fosse traduzida por 'dar a cada um o que é seu', estaria dizendo um absurdo, pois não é possível dar a alguém o que já tem. Para ter sentido deve ser assim expressa: inclui-se numa sociedade em que a cada um possa ser garantido o que é seu contra qualquer outro" (Lex justitiaê) (Met. der Sitten, I, Divisão da doutr. do Dir., A). Por outro lado, também aqueles que não vêem no conceito de J. nada mais além da tentativa de justificar determinado sistema de valores, pretendendo expungi-lo da teoria científica do direito, utilizam ou adaptam a mesma noção de justiça. Kelsen diz: "J. significa a manutenção de uma ordenação positiva mediante sua conscienciosa aplicação. Ela é J. segundo o direito. A proposição segundo a qual o comportamento de um indivíduo é justo ou injusto no sentido de ser jurídico ou antijurídico significa que seu comportamento corresponde ou não à norma jurídica que é pressuposta como válida pelo sujeito judicante por pertencer a uma ordenação jurídica positiva" (General Theory, cit., I, I, A, c, 5, trad. it, p. 14). Esse conceito de J. não está submetido às consequências resultantes das diferenças, mesmo as mais substanciais, entre as doutrinas do direito. Quer se entenda a norma como norma de direito natural, quer como norma moral ou de direito positivo, a J. é sempre considerada conformidade do comportamento à norma. No segundo conceito, a J. não se refere ao comportamento ou à pessoa, mas à norma; expressa a eficiência da norma, sua capacidade de possibilitar as relações humanas. Neste caso, obviamente, o objeto do juízo é a própria norma, e desse ponto de vista as diferentes teorias da J. são os diferentes conceitos do fim em relação ao qual se pretende medir a eficiência da norma como regra para o comportamento intersubjetivo. Platão foi o primeiro a insistir na J. como instrumento. Sócrates pergunta a Trasímaco: "Acreditas por acaso que uma cidade, um exército, um grupo de bandidos ou de ladrões, ou qualquer outro amontoado de pessoas que se ponha de acordo para fazer algo de injusto, poderia chegar a fazer alguma coisa se « os seus integrantes cometessem injustiça uns para com os outros? — Não, de certo, respondeu Trasímaco. — E se não cometessem injustiça, não seria melhor? — Seguramente. — A razão disto, Trasímaco, é que a injustiça dá origem a ódios e lutas entre os homens, enquanto a j. produz acordo e amizade" {Rep., 351 c-d). Neste trecho a J. é desvinculada de qualquer objetivo que tenha valor privilegiado: ela não passa de condição para possibilitar a convivência e a ação conjunta dos homens: condição que vale para qualquer comunidade humana, mesmo para um grupo de bandidos. Da mesma forma, no mito exposto a Protágoras no diálogo homônimo, Platão diz que, enquanto os homens não tiveram a arte da política, que consiste no respeito recíproco e na J., não puderam reunir-se em cidades e eram destruídos pelas feras. "Apesar de ajudá-los a obter alimento, a arte mecânica não lhes era suficiente para combater as feras porque eles não possuíam a arte política, de que faz parte a arte da guerra" (Prot., 322 b-c). Com mais frequência, porém, filósofos e juristas não mediram a J. das leis tomando como referência a sua eficiência geral no que diz respeito às possibilidades de relações humanas, mas a sua eficiência em garantir este ou aquele objetivo considerado fundamental, ou seja, como valor absoluto. Não faltou portanto quem julgasse impossível definir a J. nesse sentido, limitando-se a propor a exigência genérica de que, para ser justa, uma norma deve adequar-se a um sistema de valores qualquer (CH. PERELMAN, De Ia justice, 1945, trad. it., 1959). Todavia, os fins aos quais se recorreu com mais frequência são: d) felicidade; ti) utilidade; c) liberdade; d) paz. d) Foram os filósofos que mais recorreram à felicidade. Aristóteles diz: "As leis promulgadas sobre qualquer coisa visam à utilidade comum a todos ou à utilidade de quem se destaca pela virtude ou por outra forma; desse modo, com uma só expressão definimos como justas as coisas que propiciam ou mantêm a felicidade ou parte dela na comunidade política" (Et. nic., V. 1, 1129 b 4). A identificação do bem comum com a bem-aventurança eterna é um caso particular dessa doutrina (S. TOMÁS, De regimine principum, III, 3). ti) Já na antiguidade (p. ex., para os sofistas e para Carnéades) a J. foi identificada com a utilidade. No mundo moderno, Hume impôs eficazmente esse ponto de vista: "A utilidade e o fim da J. é propiciar a felicidade e a segurança, mantendo a ordem na sociedade" (Inq. Cone. Morais, III, 1). A redução da J. à utilidade, e não à felicidade, tem a característica de eliminar o caráter de fim último ou valor absoluto, levando a considerá-la como solução (às vezes a menos pior) de determinadas situações humanas. É o que pensa Hume, corrigindo nesse aspecto o jusnaturalismo racionalista de Grócio, que à J. atribuía valor absoluto, e às normas que a garantem, absoluta racionalidade, pois para ele "as relações mútuas de sociedade" possibilitadas por tais normas eram fins em si mesmas, porque objeto último de desejo (De jure belli aepacis, Intr., § 16). c) Foi Kant quem identificou J. e liberdade. "A tarefa suprema da natureza em relação à espécie humana" é uma sociedade em que a liberdade sob leis externas esteja unida, no mais alto grau possível, a um poder irresistível, o que é uma constituição civil perfeitamente justa (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, 1784, Tese V). Segundo esse ponto de vista, o iluminismo é a condição que derivará da progressiva eliminação dos obstáculos opostos à liberdade da espécie humana (Jbid., Tese VIII). d) Por fim, além da felicidade, da utilidade e da liberdade, os filósofos tomaram frequentemente a paz como medida ou critério da J. de uma ordenação normativa. Esse parâmetro foi introduzido por Hobbes: para ele, é justa a ordenação que garanta a paz, afastando os homens do estado de guerra de todos contra todos, em que vivem no "estado natural". De fato, para Hobbes a primeira lei da natureza, a primeira das normas que permite afastar o homem do estado de guerra é a que prescreve perseguir a paz. "Para a igualdade de forças e de todas as outras faculdades humanas, os homens que vivem no estado natural, isto é, no estado de guerra, não podem pretender que sua conservação seja duradoura. Por isso, tender para a paz enquanto brilhar alguma esperança de obtê-la, e só recorrer à guerra quando isso não for possível, é o primeiro ditame da boa razão, a primeira lei da natureza" (De eive, I, § 15). No séc. XX, Kelsen contrapôs à J. como "ideal irracional" a paz como medida empírica da eficiência das leis: "Uma teoria pode fazer uma afirmação com base na experiência: só uma ordenação jurídica que não satisfaça aos interesses de uns em detrimento de outros, mas que chegue a uma conciliação entre os interesses opostos, que reduza ao mínimo seus possíveis atritos, pode contar com uma existência relativamente duradoura. Só uma ordenação dessa espécie estará em condições de assegurar a paz social em bases relativamente permanentes a todos os que se lhe submetem. Embora o ideal de J. em seu significado originário seja totalmente diferente do ideal de paz, existe nítida tendência a identificar os dois ideais ou ao menos a substituir o ideal de J. pelo de paz" {General Theory, cit., I, I, A, c, 4; trad. it., p. 14). Essa tendência, partilhada por muitos que julgam irrealizável o ideal de J. como felicidade ou liberdade, tende a julgar a eficiência das normas com base em sua funcionalidade negativa, ou seja, em sua capacidade de evitar conflitos. Sem dúvida, conforma-se mais ao espírito positivo de uma teoria do direito que pretenda ter como objeto nada mais do que a técnica da coexistência humana. Mas na realidade o jusnaturalismo moderno, a partir de Grócio, já havia alcançado, pelo menos nesse aspecto, uma generalização maior, exigindo que as normas do direito natural servissem tanto para a paz quanto para a guerra, e que pudessem, pelo menos em parte, valer para qualquer condição ou situação humana. Portanto, do ponto de vista da teoria geral do direito, mesmo a paz pode mostrar-se como objetivo restrito demais para julgar da eficiência (isto é, da J.) das normas do direito. A guerra, assim como os conflitos individuais e sociais, as competições, etc, constituem situações humanas recorrentes, mesmo que indesejáveis; portanto, um juízo objetivo e sem preconceitos sobre as normas de direito deve medir sua eficiência também com relação a tais situações e às possibilidades de superá-las. Na realidade, é possível aduzir apenas dois critérios como fundamento de um juízo objetivo sobre ordenações normativas, visto que só eles valem não como fins, absolutos ou relativos, mas como condições de validade de uma ordenação qualquer. O primeiro, já bastante conhecido na tradição filosófica, é o de igualdade como reciprocidade, segundo o qual cada um deve esperar dos outros tanto quanto os outros esperam dele. Na maioria das vezes em que a tradição filosófica definiu a J. como igualdade (o que fez com frequência a partir dos pitagóricos), pretendeu ressaltar esse mesmo caráter da J., o de reciprocidade (cf. p. ex., HOBBES, Leviath., I. 14; De eive, III, § 6). O segundo critério pode ser deduzido do caráter fundamental que garante a validade do saber científico no mundo moderno: a autocorrigibilidade. Assim como o conhecimento científico se define como tal só quando organizado com vistas à sua própria verificação e, portanto, à sua autocorrigibilidade, também uma ordenação normativa define-se como tal (ou seja, consegue ser eficiente como ordenação) só quando é organizada com vistas à sua eventual autocorreção. Os dois critérios citados, com as variações devidas, também podem integrar-se. Podem conferir à palavra J. um significado tão distante do ideal transcendente e da aspiração sentimental quanto da justificação interessada das ordenações em vigor. Não se deve esquecer também que a mais eficaz e radical defesa de determinada ordenação ne varietur não foi feita pela demonstração, ou tentativa de demonstração da J. de tal ordenação, mas simplesmente ignorando-se e eliminando-se a própria noção de justiça. De fato, é isso o que acontece na filosofia do direito de Hegel, que considera o Estado como Deus realizado no mundo e nega até a possibilidade de discutir a ordenação jurídica sob qualquer aspecto. Hegel dizia: "O direito é algo sagrado em geral porque é a existência do Conceito Absoluto" (Fil. do dir., § 30). O emprego do conceito de J. no segundo significado é o exercício do juízo, que deve ser possível para todos os homens livres, sobre as ordenações normativas que os regem. Que hoje esse juízo não pode ser exercido com base em noções tautológicas ou ideais quiméricos é fato reconhecido. Mas também é fato que ele pode e deve tornar-se objeto de uma disciplina específica que o torne positivo e o mais rigoroso possível, sem subtraí-lo às suas condições empíricas. Desse forma, o conceito de J. ainda pode reassumir a função que sempre teve: a de instrumento de reivindicação e de libertação. Para a distinção das várias espécies de J., v. os verbetes: ATRIBUTIVA, JUSTIÇA; COMUTATIVO; DISTRIBUTTVO.

Fonte:Abbagnano, Nicola: Dicionário de FIlosofia.São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Texto de apoio: Cristianismo: moral e crenças

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Texto de apoio para a prova: MAX WEBER: A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO

Publicado no Caderno de Programas e Leituras Jornal da Tarde – O ESTADO DE S. PAULO 05/11/1983
Julien Freund
Desde a sua publicação, em 1904, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber, provocou enorme controvérsia, que ainda não se encerrou. Poucos livros, na nascente literatura sociológica, foram tão debatidos quanto esse, não apenas pelos sociólogos, mas também por historiadores e teólogos. Não é este o lugar para, como já fiz em outro texto, entrar no pormenor das interpretações e críticas que se opõem e contradizem, cada vez com a certeza de refutar o próprio Max Weber ou algum de seus comentaristas. Também não cabe fazer aqui o inventário dessa controvérsia. A este respeito, porém, gostaria de tecer uma observação geral acerca da impressão que me ficou do incalculável número de condenações suscitadas pelo livro de Weber: deixa-me simplesmente estupefato a maneira como certas pessoas lêem um autor com tantos parti-pris e às vezes simples má fé, até mesmo nos meios científicos e universitários.
Alguns conservam apenas certas passagens da obra e ignoram o resto, fundando assim a sua interpretação numa leitura truncada; outros simplesmente desconhecem o que Weber disse e repetiu para que lhe imputassem uma tese que ele explicitamente recusou; ainda outros fazem intervir acontecimentos que são estranhos ao próprio tema de Weber; finalmente, há quem lhe atribua a vontade de demolir o marxismo, quando ele declara exatamente o contrário. Só podemos lamentar que haja críticos que acreditam dar cabo de um autor selecionando apenas algumas de suas páginas, ou retendo somente as que possam servir ao seu parti-pris. Não pretendo absolutamente defender Weber contra tudo e todos, pois aconteceu que ele se enganasse e cultivasse certos mal-entendidos. Não está imune às críticas. Por sinal, pecaria contra a probidade intelectual quem transformasse o pensamento de um autor num certo número de dogmas intocáveis, como alguns marxistas fazem da obra de Marx.
Weber abriu os flancos, por sua falta, a algumas falsas interpretações, a começar já belas ambigüidades no título de seu livro. Por um lado, ele não examina o capitalismo propriamente dito, mas o espírito do capitalismo. Com efeito, não efetua uma análise, econômica deste sistema mas se esforça por apreender e explicar às concepções éticas e religiosas dos homens que promoveram o capitalismo moderno. Chega mesmo a dedicar longas páginas à definição do que se deve entender por "espírito do capitalismo", num sentido próximo da sua teoria epistemológica do tipo ideal. Ademais, não se interessa por todas às formas do capitalismo, mas unicamente pelo capitalismo moderno de empresa, que surgiu no final do século XVII e no começo do XVIII. Portanto, exclui as formas rudimentares ao capitalismo nas outras partes do mundo, por exemplo na China, assim como o capitalismo bancário do fim da Idade Média ou da Renascença italiana, o dos Pügger ou dos Médicis. Elimina igualmente as formas que este capitalismo pôde assumir no período.. contemporâneo, no correr do século XIX. O seu campo de investigação assim fica perfeitamente delimitado, é o das origens do capitalismo de empresa no espaço ocidental dos séculos XVII e XVIII.
Mas o título versa sobre o protestantismo, sem outra menção. Pode assim dar a entender que tratará do protestantismo em geral. Ora, a leitura do livro mostra que ele se prende a investigarão comportamento de certos protestantes, especialmente dos calvinistas. Uma vez mais, delimita nitidamente seu campo de investigação. O que examina não é, absolutamente, a doutrina do próprio Calvíno, nem mesmo a de todos os calvinistas, porém unicamente a atitude de um ramo do.calvinismo,_a dos puritanos e.r batistas, assim como a_ de algumas seitas. Além disso, não considera todos os puritanos, mas apenas os que se lançaram na aventura do capitalismo, nascente. Finalmente, circunscreve no tempo a sua investigação, pois trata de pessoas que viveram mais de um século e melo após Calvino. que por isso deram ao calvinismo originário uma nova inflexão. Uma coisa está clara: o luteranismo parece descartado dás preocupações de Weber.
Origens do capitalismo
E no entanto Lutero representa, indiretamente, um papel na análise weberiana. Até merece um longo parágrafo na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Mais uma vez, convém fixar o campo da investigação de Weber. Os luteranos, enquanto pertencem à Confissão de Augsburgo, não entram na sua problemática, pois foi irrisório, o seu papel no nascimento do capitalismo moderno. Em compensação, porém, o próprio Lutero formulou um conceito, o de Beruf (1), determinante para todas as igrejas protestantes, que também os calvinistas e puritanos herdaram. Deste ponto de vista, o título da obra, que se refere à ética protestante em geral, não é tão equívoco quanto alguns pretendem. Para dar clareza ao debate, já de entrada, assim se pode caracterizar o terreno de investigação de Weber: ele não faz entrar em conta a doutrina pessoal elaborada pelo próprio Calvino, mas a prática dos calvinistas posteriores a ele; em compensação, deixa de lado a doutrina posterior dos luteranos, para incluir a doutrina pessoal elaborada por Lutero.
Depois de assim delimitarmos com a maior precisão possível o terreno no qual se situa Max Weber, devemos, para a adequada compreensão do papel de Lutero na análise weberiana, definir da maneira mais distinta possível o projeto do autor na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Com efeito, não poderemos interpretar opapel que Weber atribui a Lutero no nascimento do capitalismo moderno se não elucidarmos, previamente, a perspectiva de conjunto na qual ele se inscreve. Isto me parece ainda mais indispensável porque numerosos críticos do pensamento de Weber ou negligenciaram tal aspecto, o que explica alguns de seus contra-sensos, ou o interpretaram mal, deixando de se referir às passagens em que evoca a doutrina de Lutero.
Fique claro que não é meu objetivo, aqui, controlar se é correta ou não a interpretação que Weber propõe de Lutero. Esta questão fica para os teólogos, e é provável que não selam todos da mesma opinião. Tudo o que penso fazer é expor tão exatamente quanto possível a maneira pela qual Weber compreendeu (pouco importando eventuais erros teológicos) o papel de Lutero na sua análise da origem do capitalismo moderno.
A Reforma introduziu uma nova forma de conceber a economia (alguns de cujos aspectos, é verdade, já estavam em gestação nos séculos anteriores), cuja importância os próprios protestantes não perceberam imediatamente, mas apenas pouco a pouco, na trilha das modificações que os puritanos introduziram no calvlnismo primitivo. Esta nova forma econômica é a que chamamos, hoje, capitalismo. Ela, porém, não estava inscrita no protestantismo originário de Lutero ou Calvino, só tomando corpo entre os protestantes ulteriores, que à sua maneira aplicaram os preceitos destes dois reformadores. O engenho da análise de Weber está em mostrar, fundando-se em textos de época, que esta introdução do capitalismo não obedeceu inicialmente a uma motivação econômica, porém religiosa. Em outras palavras, o desenvolvimento da economia não depende necessariamente de transformações internas a ela, mas estas podem ter uma fonte externa; ou ainda, a economia não se explica unicamente pela economia. 1
Com efeito, não devemos esquecer que naqueles tempos o império da religião era predominante, a descrença constituindo uma raridade. A religião, profundamente vivida naquela época, não determinou apenas a ética mas também a conduta prática da vida em todos os domínios, inclusive — naturalmente — no da economia.
O projeto de Weber
A novidade introduzida pela Reforma, em particular na sua versão calvinista, dizia respeito ao ascetismo. Esta atitude foi familiar aos cristãos em todos os tempos, mas na Idade Média era reservada a uma elite religiosa, a dos monges. Graças à Reforma passará a governar o comportamento cotidiano de todo crente que aderiu à nova crença. É a passagem do que Weber denomina a ascese extramundana (dos monges que fugiam do mundo para se entregarem à prece e à contemplação) à ascese intramundana, enquanto prática da vida ordinária dos homens que trabalham neste mundo. Esta passagem também recebe de Weber o nome de "secularização" do ascetismo, que o humanista Sebastíen Franck (a quem Weber cita) traduzia nesta forma típica: a Reforma significa que, no futuro, todo cristão deverá ser monge a vida toda. Foi, se quisermos, uma espécie de democratização do ascetismo, que até então era prerrogativa da aristocracia religiosa dos conventos. Já compreendemos, então, uma das razões para inexistirem mosteiros entre os protestantes.
O processo descrito por Weber é o seguinte: a ascese dos puritanos na sua vida individual e familiar opunha-se ao consumo da mais-valia. O que fazer do capital assim poupado e acumulado, do qual não se gozava pessoalmente? Dar-lhe um uso produtivo no próprio empreendimento a fim de fazê-lo crescer, sendo este crescimento racionalmente programado (2). Uma questão se coloca: terá sido Weber o primeiro a fazer esta análise? Algumas indicações sumárias neste sentido encontram-se em P. Engels, mas o próprio Weber refere-se explicitamente a Eduard Bernstein, o autor socialista e marxista que ficou conhecido como "o pai do revisionismo". Weber tinha relações de amizade com ele e reconhece que Bernsteirl lhe teria fornecido uma parte da literatura que serviu de base a esta obra. Contudo, se Bernstein captou bem o mecanismo da acumulação de capital, Weber considera que não percebeu o outro aspecto, o da racionalização da vida econômica graças à ascese. Procuremos agora recapitular as diferentes fases da demonstração weberiana.

A racionalização
Sabe-se que a crescente racionalização da vida é um dos temas centrais do pensamento sociológico de Max Weber. O capitalismo introduziu essa racionalização na vida econômica. Contudo, as primícias desse processo já se encontravam na Idade Média, e precisamente no contexto religioso. Observemos, porém, que para Weber o conceito de racionalidade não é inteiramente unívoco, pois contém "um mundo de oposições". Além disso, a vida pode ser racionalizada em função de objetivos extremamente diversos e segundo direções extremamente distintas. Uma destas direções foi a tomada pela ascese na vida religiosa, particularmente desenvolvida nos mosteiros. Evidentemente, os .monges nem sequer pensavam em racionalizar a vida econômica, da qual se desinteressavam devido a seu voto de pobreza, mas tentaram racionalizar a sua vida mesma, na sua globalidade; a melhor ilustração disso é a introdução de uma regra, que desde São Bento faz parte da constituição de uma ordem. Essa é, mesmo, a diferença essencial entre o monarquismo oriental e o ocidental
O monarquismo oriental obedeceu a uma tendência mais anárquica. É verdade que os candidatos a esse tipo de vida renunciavam ao mundo, mas geralmente preferiam a vida arbitrária do eremita, entregando-se a uma vida religiosa de virtuose que escolhia ele próprio, a seu critério, as mortificações e até algumas torturas. O monarquismo ocidental, ao contrário, está ligado a uma condução metódica da vida. fundada numa regra comum, exigindo portanto no interior do convento uma disciplina que rode até culminar na rigidez militar dos jesuítas. O ascetismo consistia neste caso em um controle ativo e racional da vontade, tendo em vista liberar o homem do jugo dos instintos e das paixões, enquadrando -o numa regulamentação precisa de exercícios e devoções que pontuavam todas as horas do dia.
Essa racionalização pela ascese foi herdada por alguns meios protestantes. Foi sempre estranha aos luteranos, e não foi aceita por todos os calvinistas. Foram principalmente os puritanos que a integraram em seu estilo de vida, a ponto de serem comparados, às vezes com os franciscanos descalços. Por sinal, um enviado de Gênova à Inglaterra. Fieschl,observou num relatório que o exército de Cromwell lhe dava a impressão de um capítulo de monges. Contudo, na transposição do ascetismo produziu-se uma importante modificação, que já indicamos. Ela é fundamental para compreendermos o pensamento de Weber. A ascese era praticada pelos monges no quadro de uma vida longe do mundo (ausserweltliche Moenchsaskese) enquanto o do puritano permanecia diretamente ligada à ação do mundo, e particularmente ao exercício da profissão que incumbia a cada homem (innerweltliche Berufsaskese) (3). Lutero abria espaço para a espontaneidade na existência -e para o impulso do sentimento ingênuo, ao passo que, segundo os puritanos, a vida inteira devia ser moldada de maneira sistematicamente racional. Compreende-se, assim, que nas cortes dos príncipes protestantes luteranos fossem tolerados a bebida e até mesmo costumes grosseiros. Numa família calvinísta puritana, ao contrário, tais comportamentos viam-se totalmente excluídos: o rigor pessoal de cada um repercutia no conjunto da família (no sentido amplo), até comprimir toda emoção ou, pelo menos, não a deixar transparecer. Tem cabimento supor que Max Weber fosse particularmente sensível a este contraste interno ao protestantismo, não apenas por ser ele alemão e protestante, mas também por ter nascido numa família de reformados,, numa Alemanha de maioria luterana. Às vezes me pergunto se um reformado francês poderia ter a intuição de escrever uma obra como Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Os puritana em questão são, portanto, antes de mais nada crentes que procuram harmonizar sua vida cotidiana com suas convicções religiosas, o que os leva a uma conduta rigorista do ponto de vista moral. Sem dúvida, como Max Weber não põe dificuldade em reconhecer, o sociólogo poderia limitar-se a analisar o seu comportamento ético e prático e negligenciar os seus fundamentos dogmáticos. Uma tal divisão, contudo, obstaria a compreensão do comportamento dos puritanos e sobretudo das conseqüências deste. Com efeito, as convicções
religiosas são determinantes no estilo que inauguraram na economia.
A economia puritana
A vida do puritano não tem sua significação em si própria, nos seus próprios interesses, porém na glória de Deus. O mundo não existe por si mesmo, mas porque foi criado por Deus, ad majorem Dei gloriam. Este é o artigo fundamental da sua fé: é o homem que existe para Deus, e não o inverso. Essa glorificação da majestade divina não consiste apenas nas manifestações ocasionais de culto, mas principalmente nos atos de todos os dias. inclusive—e acima de tudo — no exercício da profissão. A piedade, no sentido de devoção, é vazia quando se limita a atos pios, pois permanece estritamente individual, e portanto submetida à emoção pessoal. Ora, a salvação da alma não depende do fiel, mas apenas de Deus, que dele faz um vaso de eleição, ou não. Aqui se reconhece, em linhas gerais, a doutrina da predestinação de Calvino, segundo a qual unicamente Deus decide quem será salvo ou não. O crente não pode penetrar os segredos de Deus, menos ainda influir na sua vontade. Nenhum sacramento, cerimônia, emoção ou superstição podem ajudar-nos a adivinhar os decretos divinos. A conseqüência é um desencantamento do mundo, condição para racionalizar-se a vida. Contudo, a doutrina calvinísta da predestinação periga lançar o fiel na incerteza, pois ele não salva a si próprio, em princípio, por mais que faça. A doutrina católica do perdão e do arrependimento é inteiramente oposta. Apesar de haver pecado, o fiel católico pode resgatar-se pela confissão, dispondo o padre do poder das chaves, e no imaginário popular até pode de certa forma comprar a sua salvação, acumulando durante a existência boas obras que serão contabilizadas no dia da sua morte. A absolvição católica, no fundo, é uma consolação.
A predestinação, ao contrário, expunha o calvinista a uma tensão interna, uma vez que o seu destino está fixado prévia e independentemente dele, tensão que pode converter-se em angústia. Os pastores, que estavam em contato imediato com os tormentos que essa doutrina pode gerar, foram obrigados a formular certos compromissos para poderem reagir eficazmente à angústia que a incerteza quanto à salvação podia suscitar. Fizeram-no de duas maneiras. Por um lado, ensinavam que considerar-se eleito por Deus é um dever. Assim se esconjurava a angústia causada pela incerteza acerca da eleição divina. Aos olhos desta pastoral, manifestar alguma dúvida a respeito até passava como tentação pelo demônio ou, pelo menos, como sinal de fé insuficiente. Contudo, como sublinhava o pregador puritano Bunyan, bastava um pecado para arruinar toda essa certeza. Mas existem sinais que permitem ao fiel adquirir a certeza da sua eleição; deles, o principal era o sucesso no seu ofício. Em outras palavras, o êxito profissional tornava-se uma confirmação (Bewaehrung) da salvação, isto é, da inclusão na categoria dos eleitos. Com efeito, esse sinal indicava que Deus age em nós para sua maior glória.
Com isso, um certo número de controvérsias, a que nos referimos inicialmente, perde sentido. Weber trata não propriamente da teologia de Calvino, mas da pastoral dos ministros da religião — como Baxter, Bailey, Hoornbeek e outros. Em várias ocasiões nos adverte contra qualquer confusão a respeito (4). Se volto rapidamente a esse aspecto do pensamento weberiano é porque tenho a esperança de que os comentaristas se decidirão a ler a sua obra em vez de escutar em os seus preconceitos ou prevenções Também gostaria de insistir em outro ponto. Weber indica que os primeiros empresários eram artesãos que, prosperando, empregaram outros artesãos, seus antigos companheiros de trabalho que freqüentavam o mesmo templo, à medida que suas fábricas se expandiam. Quer dizer que, nessa época primitiva do capitalismo, empresários e operários saiam da mesma camada social, ainda mais porque recebiam juntos o mesmo ensinamento do mesmo pastor, de modo que eram animados pela mesma convicção acerca do trabalho para maior glória de Deus. É desse enfoque que a idéia da "origem de capitalismo" alcança todo o seu sentido. O que Max Weber descreve é o capitalismo primeiro, o dos iniciadores, e não o subseqüente, marcado pela separação social entre empresários e operários (5).
Divergindo da doutrina de Calvino em vários pontos, essa pastoral introduziu modificações na maneira como se recebiam os princípios da teologia do genebrino. Essas modificações produziram diversos resultados, tanto no plano da teologia quanto no da ética e, finalmente, no da economia, desde que a maneira de conceber o trabalho influencia a economia.
A ascese como vocação
Antes de mais nada, mas de maneira sucinta, as conseqüências teológicas. O puritanismo afastou-se da desconfiança do protestantismo primitivo quanto à santíficação pelas obras. Sabe-se que, devido à sua doutrina da sola fides (6), Lutero atribuiu às boas obras um papel secundário. Calvino foi menos categórico, porém considerava que o valor de tais obras aos olhos de Deus é uma incógnita para o homem. Contudo, desde que o sucesso no trabalho se tornava sinal de eleição e que os frutos deste trabalho permitiam organizar melhor o regime social, concebido também como uma glorificação de Deus, era natural que a pastoral puritana devesse encontrar a idéia da santificação pelas obras, assim se aproximando do catolicismo. Contudo, permanece importante a diferença entre as duas versões. Essa santificação para o católico continua sendo uma
sucessão de atos isolados, que ele executa ao sabor das circunstâncias e das ocasiões. Para o puritano, ao contrário, é a vida inteira que deve ser erigida no sistema de uma boa obra, significando ademais que Deus não ama os homens sem razão. A seus olhos, portanto, não se trata mais de acumular atos discricionários, mas de seguir um método que faça da própria vida um conjunto coerente e racional, fundado numa disciplina permanente da conduta. Em segundo lugar, se o puritano não é juiz de sua salvação, torna-se porém juiz da certeza de sua eleição. Disso resulta que se considera capaz de "controlar" o seu próprio estado de graça. "Da mesma forma, escreve Weber, que controlava a sua própria conduta, o puritano das gerações posteriores controlava o comportamento de Deus, cujo dedo enxergava em cada pormenor de sua vida. Contrariamente â doutrina autêntica de Calvino, sempre sabia por que Deus tomava tal ou qual disposição" (7) Era essa atitude, feita de tanta segurança, que irritava os adversários ou contestadores do puritanismo. Como quer que fosse, essa vigilância constante dava lugar a uma espécie de contabilidade moral, sob a forma por exemplo de diários íntimos, que relatavam o progresso do fiel no caminho das virtudes e da graça, a exemplo das estatísticas morais de Benjamim Franklin.
No plano ético, a conseqüência foi o rigorismo da ascese puritana, cuja origem se encontra precisamente nas crenças e práticas religiosas. Weber reconhece que outros autores já abordaram esse tema, e situa a sua originalidade no evidenciamento do caráter racional desse tipo de ascetismo. Ele é igualmente governado pela preocupação de glorificar a majestade de Deus. A ascese calvinista reside essencialmente na labuta, no "trabalho sem descanso em seu ofício". A atividade temporal assim se torna caução e confirmação da eleição espiritual, graças à disciplina imposta pelo trabalho. Weber precisa, contudo, que essa disciplina não deve ser comparada à dos jesuítas, porque estes nunca estabeleceram ligação intrínseca entre a atividade temporal e a certeza da salvação. No fundo, este ascetismo deixa-se resumir na fórmula: "Deus ajuda a quem se ajuda" (8).
No que consiste a racionalidade deste ascetismo? Negativamente, significa o recalcamento da subjetividade do sentimento e da efusão religiosa, assim como a impersonalidade da prescrição ética. O puritano não trabalha para si mesmo, para o gozo que possa ter, mas para maior glória de Deus. Daí a necessidade de controlar seus impulsos, suas emoções, desejos e ímpetos. Todavia, tal atitude não exclui a satisfação do indivíduo, que porém só pode consistir na certeza da salvação. Para tanto Baxter chega a recomendar que nos guardemos de toda
expansão na amizade, que desconfiemos de todo ardor na ajuda ao outro ou na solidariedade. Spangenberg pretende seguir o versículo do profeta Jeremias: "Desgraçado o homem que confia no homem". O puritano não deve ter outro confidente além de Deus. Assim, o calvinismo não conhece tensão, como a kierkegaardiana, entre o indivíduo e a moral. Como o trabalho é o meio para glorificar a Deus, perde toda conotação pessoal. Nestas condições se compreende que o puritano se mostre hostil à contemplação e à mística, pois são elas formas de ociosidade que favorecem a efusão irracional, e também ao quietismo, que encoraja a fuga para fora do mundo, no sentido da ascese extra-mundana. O místico entende estar em comunicação com Deus (9), enquanto o puritano, ao contrário, se considera apenas como o instrumento de Deus que está destinados a glorificar, por melo do seu trabalho, a cria
ção: não passa de administrador dos bens
adquiridos por seu trabalho.
Positivamente, esta atitude é racionalizadora em seu metodismo, que introduz a coerência entre a fé e a atividade temporal entre o dogma e a prática. Todo ato assim se inscreve na lógica do anterior; e o conjunto dos atos, num sistema global da vida. Tal coerência só é possível sob a condição de que o crente não tome posse ele próprio dos frutos do seu trabalho, isto é, que não se faça de dono a gozá-los. Com efeito, este último comportamento conduziria, a longo prazo, ao ócio e às tentações da carne, ao desperdício das capacidades que Deus concedeu ao homem para que este O glorifique. O principal pecado consiste justamente em desperdiçar o tempo, o que significa, gastá-lo em outras coisas, dedicar-se a ações inúteis e imorais. Por conseguinte os pregadores puritanos não condenavam apenas o luxo ou a preguiça mas também.a exemplo de Baxter ou Sanford, a vã tagarelice e até mesmo os transportes amorosos no seio do casamento A acumulação da riqueza não é proibida se ela resulta do trabalho, pois o que se condena não é a aquisição racional de bens, mas o seu uso irracional. Isso quer dizer que a riqueza não libera o indivíduo do imperativo de trabalhar, pois ambos são modos de glorificar a Deus, ainda mais por ser o lucro sinal de eleição. "Trabalhai então para serdes ricos para Deus, declarava Baxter, não para a carne e o pecado." E Weber assim comenta este comportamento: "Aquele que sabe, melhor que o seu próximo, empregar para a glória de Deus o que possui não está absolutamente obrigado por amor ao próximo a repartir seu bem com ele" (10).
Pobreza e lucro
Está evidente que tal Berufsaskese pelo trabalho entra em contradição com o ascetismo da pobreza, sobretudo o dos monges que fazem voto neste sentido. Sem dúvida, há no mundo os que são pobres por condição. O puritanismo os aconselha a serem capazes de suportar o seu estado. Em contrapartida, rejeita como "doença" o fato de se forçar à pobreza e de felicitar-se ou glorificar-se por ela. O homem não tem de glorificar a si próprio, mas somente a Deus. Por mais forte razão, os puritanos recusam a mendicância.
Esta ética ascética do trabalho não podia deixar de repercutir tanto no consumo dos bens quanto na sua produção. A parábola do servidor despedido porque não fizera frutificar a moeda que seu senhor lhe confiara servírá de justificativa para a busca do lucro, que passa não apenas por permitido, mas ainda por um dever ético e religioso. "Se este Deus, escreve Weber, que o puritano vê agindo em todas as circunstâncias da vida, mostra a um de seus eleitos uma ocasião de lucro, é de propósito. Portanto, o bom cristão deve responder a este apelo." (11) Deste ponto de vista, o puritanismo produziu uma ruptura na mentalidade tradicional que nem Lutero nem Calvíno chegaram realmente a reprovar: suprimiu a desconfiança face ao desejo de aquisição e da crematística. A partir de agora o lucro deve ser considerado como desejado por Deus, sob a condição de não o convertermos em objeto de gozo. Gomo bom administrador da fortuna desejada por Deus, o empresário deve empregá-la para fins úteis, que serão diversas maneiras de glorificar a Deus. Em outras palavras, o novo estilo teve um duplo efeito: econômico e social.
O efeito econômico foi o que recebe maior ênfase por parte dos intérpretes de Weber: não se podendo valer dos produtos do seu trabalho a título de possuidor a gozá-los, o puritano investiu o lucro no seu negócio, para desenvolvê-lo como bom intendente do seu único dono, a saber, Deus. A audácia do projeto de Weber consiste, portanto, em mostrar-nos que o novo desenvolvimento econômico não obedeceu a motivos puramente econômicos, mas também a motivações religiosas e éticas. Em outras palavras: sinal da bênção divina, a economia se tornará também bênção para os homens, no sentido de uma economia da abundância.; Contudo, Weber detém-se apenas no primeiro aspecto, salvo para notar que esta concepção puritana "velou no seu berço o homo economicus moderno" (12). Evidentemente, dada a natureza humana, era de se esperar que se desviassem as intenções dos primeiros empresários puritanos. Disso tinha perfeita consciência o metodista Wesley, promotor do revival: perguntava se o aumento das riquezas e bens não acarretaria, inversamente, uma debilitação da religião. Não Obstante, declarava: "Não impeçamos os homens de serem diligentes e frugais. Exortemos todos os cristãos a ganharem e a pouparem o que puderem, em outras palavras, a se enriquecerem". Mas, ao mesmo tempo, recomendava aos seus fiéis que dessem sob outras formas o que tivessem adquirido. Preconiza, portanto, uma racionalização sociai a partir da racionalização econômica. Porém, observa Weber, um tal projeto era estranho a Lutero, fiel à indiferença paulina, pois, ainda que timidamente, implicava uma reforma social.
Raros comentaristas de Weber perceberam que ele credita aos primeiros empresários puritanos a iniciativa do que chamamos de questão social, por sinal num sentido utilitarista que os economistas liberais vulgarizarão mais tarde. Não é o menor dos paradoxos que a conduta rigorista e ascética dos puritanos tenha sido uma das fontes do utilitarismo. O fato de contribuir para uma organização melhor da sociedade constituía, aos olhos destes pioneiros, uma outra maneira de celebrar a glória de Deus, criador do mundo mas também da ordem social. Esta obra respondia, ao mesmo tempo, à impersonalidade da racionalização puritana, no sentido de que o crescimento econômico era posto a serviço da utilidade social geral, portanto impessoal. Inscrevia-se no sistema dos comportamentos metódicos que se diferenciavam da fragmentação das boas obras do catolicismo (esmola, dom, etc.) em atos isolados. Weber considera sintomático que os pregadores puritanos tenham substituído, nas suas justificações, a simbólica jurídica tradicional pela simbólica comercial, concebendo a sua pastoral segundo os procedimentos "de uma exploração comercial" (13). Baxter, por exemplo/explicava a invisibilidade de Deus através da imagem do comerciante que trata por correspondência, com um estranho a quem nunca viu. O mesmo pregador insistia nas virtudes da divisão do trabalho, com uma eloqüência que as vezes faz pensar na de Adam Smith, porque ela condiciona uma produção quantitativa e qualitativamente superior, em proveito do bem geral, isto é, do bem impessoal do maior número. Recorria, portanto, à motivação utilitária.
Esta maneira de ver dos pregadores inspirou a conduta de todos os seus fiéis, tanto dos operários quanto dos empresários. Para uns e outros, o labor industrioso constituía um dever face a Deus. A religião do trabalho terminou determinando o comportamento de todos; os sindicatos a herdarão no século XIX. É toda imagem do trabalho que desde então se vê modificada. Com efeito, a indústria moderna, apesar das lutas que gerou, só foi possível a partir da concordância inicial no piano religioso, entre operários e empresários. As duas categorias participavam igualmente da. "edificação do cosmos prodigioso da ordem econômica moderna" (14)

Weber insiste no fato de que esta mentalidade foi unicamente a dos agentes (operários como empresários) do capitalismo primitivo, pois, posteriormente,’ mudaram as coisas, devido ao declínio das convicções religiosas. Mais tarde, com efeito, "o ardor pela busca do reino de Deus começava a diluir-se gradualmente na fria virtude profissional; a raiz religiosa definhava, cedendo lugar à secularização utilitária" (15) E Weber acrescenta: "Hoje o espírito do ascetismo religioso escapou da gaiola — definitiva mente? Quem poderia saber… Seja como for, o capitalismo vencedor não precisa mais deste apoio, desde que repousa numa base mecânica" (16). Mas é inegável que um dos elementos fundadores do espírito do capitalismo moderno foi este empenho numa conduta metódica e rigorosa, por razoes religiosas, e que por isso mesmo foi também uma das fontes da civilização moderna. Gostaria de insistir nesta conclusão de Weber, pois ela pouparia numerosos mal-entendidos do lado de seus intérpretes.
A noção de Beruf
Até aqui, nossa análise deu pouca consideração a Lutero, exceto para opor, ocasionalmente, o luteranismo e o calvinismo. Parece, então, que a doutrina luterana não terá desempenhado um papel no advento do capitalismo. À primeira vista, tal observação pode parecer adequada, sobretudo .se levamos em conta algumas observações de Weber. Por um lado, o capitalismo teve o seu berço na Holanda e na Inglaterra, antes de emigrar para a América, isto é, nos países ditos reformados, embora Weber considere que "reformado" não é absolutamente sinônimo de "calvinista". A Alemanha luterana manteve-se à parte do movimento, e quando o espírito capitalista penetrou nela foi sob impulso da minoria reformada. Por outro lado, Weber pensa que, sem o calvinismo, o protestantismo não passaria de uma religião confinada no norte da Europa. Se conseguiu implantar-se em quase todas as partes do mundo, foi graças ao espírito expansionista do calvinismo.
E no entanto o papel do próprio Lutero — não o do luteranismo — não foi nulo, nem sequer negligenciável. É verdade que Lutero não contribuiu.para o surgimento positivo e o histórico do capitalismo enquanto sistema econômico — mas elaborou uma maneira de conceber a ética que influenciou o espírito do capitalismo. É neste sentido que dissemos, acima, que a noção de "ética protestante", que figura no título da olra de Weber, não é tão incongruente quanto alguns o pensam. Compete-nos então, se quisermos fazer uma avaliação correta do pensamento de Weber, mostrar por que Lutero não foi diretamente, porém indiretamente, uma das fontes do espírito capitalista.
Várias vezes, nas linhas que precedem, aludimos ao obstáculo que a doutrina de Lutero constituiu para o surgimento da economia capitalista. Esta tem por fundamento a empresa levada racionalmente a cabo, com base num comportamento racional e metódico dos agentes econômicos. Com efeito — é esta a idéia cardeal da tese de Weber — a racionalidade econômica não é intrínseca ao desenvolvimento da economia, mas é introduzida de fora, graças à atividade dos homens que adotaram uma conduta racional, neste caso devido a motivos éticos inspirados por uma pastoral religiosa. Ora, esta racionalidade da conduta não se encontra na doutrina de Lutero. É por isso que o luteranismo não era capaz de imprimir um novo rumo à economia.
Por um lado, com efeito, Lutero abre espaço à espontaneidade e à emoção ingênua na condução da vida. Ele sofria o que hoje chamamos de "estados d’alma". Em todo caso, não excluía a união mística, como mostram as suas referências ao místico re-nano Tauler. É que Lutero tinha uma consciência viva do pecado original, o que significa que ele sentia intensamente a indignidade da criatura causada por este pecado, contrastando assim com a certeza que os puritanos tinham da eleição divina. Por conseguinte, a idéia de uma possível danação eterna fazia parte da experiência religiosa do luterano. Em outras palavras, o mundo de Lutero conservava o encantamento. Deste ponto de vista, Lutero estava mais perto do catolicismo que os calvinistas, isto é, era mais tradicionalista. "Faltavam-lhe por completo o estímulo do controle constante de si mesmo", escreve Weber, "a regulação metódica da vida pessoal que a pesada doutrina calvinista implica. Um gênio religioso como Lutero podia viver sem problemas nesta atmosfera de abertura ao mundo e de liberdade tanto tempo quanto o seu impulso lhe permitisse" (17). Compreende-se, nestas condições, que Lutero desconfiasse do ascetismo, de uma sistematização da conduta e de uma racionalização metódica da existência. O fiel tinha, para ele, direito a gozar a vida, desde que a fé permanecesse intacta. Assim, ao contrário dos calvinistas, a doutrina de Lutero não excluía o arrependimento e a regeneração da alma que se extraviara, simplesmente porque não fornecia nenhuma segurança acerca da certitudo salutis ou da possibilidade de ser um santo que tivesse atingido a perfeição. Tal contraste Weber resume da seguinte maneira: "Os calvinistas acusam os luteranos de sentirem ‘um verdadeiro terror só de pensarem em se tornar santos’ (Moehler); os luteranos, em compensação, censuram aos calvinistas a sua ’submissão ser-vil à lei’, assim como a sua arrogância" (18). A novidade ou modernidade de Lutero consistiu em rejeitar a idéia salvação pelas obras,seguinte a de contabilização das boas ações.Nada podia irritar mais a Lutero do que o uso das indulgências, que não constituía um abuso menor, mas o mal profundo da Igreja. As obras, isto é, os frutos do trabalho, pelo contrario, constituem, aos olhos do puritano, um dos sinais da eleição. O sucesso no mundo, sob a forma de uma organização econômica e social, opunha-se ao sentimento de Lutero, que se mantinha fiel à autoridade política e indiferente a toda inovação que não fosse religiosa. De um angulo mais geral, "a tendência à disciplina ascética, aos olhos de Lutero, era suspeita de constituir uma santificação pelas obras", o que o levou, e sua Igreja com ele, a repetir com ênfase crescente esta idéia" (19). É verdade que Lutero proferiu imprecações contra os privilegiados da fortuna seus contemporâneos, especialmente contra os Fugger (20), mas não o fez em nome da idéia de austeridade ou de ascetismo, e sim com base na doutrina tradicional a respeito das aquisições injustas e ilícitas. Com efeito, Lutero praticamente’ não estava a par dos escritos econômicos de sua época, como por exemplo os de Antonino de Florença, que contestava os argumentos acerca da esterilidade do dinheiro. Afinal, como observa Weber: "Em numerosas declarações contra a usura e o juro em geral, Lutero exprime sem qualquer equívoco, sobre a natureza da aquisição capitalista, convicções que, comparadas às da escolástica tardia, de um ponto de vista capitalista são francamente atrasadas" (21). Para dizer a verdade, Calvino nào tinha mais conhecimentos a este respeito que Lutero. O que é uma razão a mais para não confundirmos a doutrina de Calvino com a posterior pastoral dos puritanos.
A contribuição de Lutero
Aclaremos mais uma vez qual é a ética de Weber. Não dirige a atenção para a origem da economia capitalista enquanto prática econômica recém-introduzida no circuito empírico das trocas e da produção, mas para o espírito do capitalismo, quer dizer, a mentalidade que favoreceu a inovação capitalista. Por sinal, os pastores puritanos também não conheciam a literatura econômica do seu tempo, e no entanto influenciaram o espírito da nova economia com sua pregação. É no mesmo sentido que devemos compreender a contribuição de Lutero para o espírito do capitalismo.
Vimos que importância os primeiros empresários atribuíam ao ofício, que consideravam como uma vocação: estavam tomados pela. certeza de que Deus os chamara a determinado ofício, para que o fizessem frutificar com vistas à maior glória divina. Ora, foi Lutero o primeiro a elaborar esta maneira de conceber o ofício, com o vocábulo de Beruf, que tem a dupla conotação de profissão e vocação. É difícil, aliás, traduzir este termo em outras línguas por uma palavra que possa respeitar o seu duplo sentido. O próprio Weber observa-o: nas outras línguas "não existe nenhum vocábulo com matizes adequadas a designar o que nós, alemães, denominamos Beruf" (22). Foi por meio dessa noção que Lutero pesou no espírito do capitalismo, embora os calvinistas e purita nos a tenham recebido bem tardiamente apenas no correr do século XVII.
Foi traduzindo a obra de Jesus ben Sira que Lutero deparou com a noção de Beruf, para traduzir os termos ergon e ponos, que significam a ocupação contínua a que um homem se dedica. Será exata a tradução? Weber considera que ela mais reflete a interpretação do tradutor do que o sentido original. Pouco importa, porém; o fato é que o vocábulo veio a tomar-se corrente nos meios luteranos, antes de emigrar para outros países protestantes, recebendo, por exemplo, a denominação de calling em inglês. Somente as línguas latinas ficaram de fora, não tendo ainda conceito único para exprimir a noção de Beruf na sua dupla conotação de profissão e vocação.
Com essa noção, Lutero pensava atribuir valor positivo à atividade cotidiana e temporal enquanto expressão da vida moral, ao contrário do catolicismo que valorizava mais a vida monástica e os atos descontínuos e excepcionais de caridade, ou as boas obras. Desde então a labuta puramente tem poral adquiria dignidade igual à da tarefa espiritual. Talvez Lutero tenha sofrido a este respeito a influência do místico Tauler, que já considerava como equivalentes as vocações espiritual e mundana. Desimcubir-se corretamente do trabalho profissional passou então a constituir um dever e uma maneira de viver que agrada a Deus. Foi uma profunda mudança na mentalidade da época, pois, como nota Weber, "tal valorização da vida neste mundo, considerada com -uma tarefa a cumprir, teria sido impossível na pena de um autor medieval" (23). De resto, é verdade que o pensamento de Lutero variou acerca dessa questão no correr da sua vida, especialmente em conseqüência da Guerra dos Camponeses, pois constata-se um retorno à concepção tradicional após esta agitação. Contudo, estas considerações só valem para estudarmos a evolução do pensamento pessoal de Lutero, pois o luteranismo mais tarde vulgarizou a noção de Beruf, que, retomada pelos puritanos, tornar-se-á, como vimos, um dos conceitos-chave da sua ética.

Constatamos acima o quanto a ética puritana era severa e rigorista. Contudo , se é verdade que o capitalismo nascente foi acima de tudo obra dos calvinistas, a contribuição destes não foi exclusiva. Outros retomados empenharam-se na mesma via, de maneira menos característica: pietistas, metodistas e batistas. Weber consagra-lhes um certo numero de páginas. Eles abrandaram e temperaram a rigidez puritana, incluindo na sua doutrina elementos de proveniência luterana, em especial a abertura de um espaço para a espontaneidade e o sentimento davida.
Numa certa medida, o pietismo reforçou o ascetismo calvinista, mas, ao mesmo tempo, e muito mais flexível no que diz respeito à dogmática. Manifestou desconfiança pela Igreja dos teólogos, considerando até que os predestina dos podiam estar sujeitos a erros e a pecados. Por um lado, portanto, aproximava-se do calvinísmo ao recomendar o ascetismo e a integração das boas sob a condição de que fossem realizadas para a maior glória de Deus. Por outro, e avizinhava-se do luteranismo admitindo a regeneração de uma alma que se extraviasse provisoriamente e repugnando a solidão de um "eu" puramente racional, amputado de toda sensibilidade. Sem dúvida, as boas obras nào eram absolutamente necessárias para a salvação, mas tornavam-se necessárias desde que se adquirisse a certeza desta, porque quem abrisse mão delas não seria realmente salvo.
Encontra-se esta mesma mistura incerta no metodismo. Como o próprio nome indica, defende este uma condução sistemática da vida. característica do puritanismo, mas também concede grande importância à espontaneidade na prática religiosa, chegando mesmo a aprovar o êxtase. Até considera que podemos alcançar a consciência da perfeição já besta vida. embora tal objetivo seja difícil de se atingir, de modo que não é possível realizá-lo a não ser perto da morte. Contudo, como no luteranismo, a graça pode ser sentida internamente, o que quer dizer que a conduta virtuosa e rígida não é bas-tante; mas, como o calvinista. o metodista aceita a prática das boas obras, embora não sejam causa de estado de graça, apenas meio para reconhecê-lo.
Weber considera os batistas não como uma igreja, mas como um conjunto de seitas que. na maior porte nasceram na Europa nos confins do luteranismo. O fundamento espiritual destas seitas diverge em profundidade da doutrina calvinista, na medida em que se referem (pelo menos as primeiras comunidades históricas) ao pneumatismo da Igreja primitiva e repousam na regeneração do fiel através de um segundo nascimento pelo batismo. O aspecto pneumático da sua doutrina faz que não concebam a Bíblia como fonte única da revelação, pois esta é permanente, no sentido de que o Espírito Santo pode agir cotidianamente em cada crente e conceder-lhe o espírito profético. Tais seitas, porém, aproximam-se. do calvínismo porque, por um lado, integram na prática as boas obras, por outro, preconizam a impregnação da vida pelas virtudes ascéticas. Em suma, o homem deve agir neste mundo — embora diversas seitas recusem praticar o Juramento ou fazer o serviço militar, mas nunca fazendo deste mundo a finalidade da existência.
Como de hábito, Max Weber esmaltou a sua análise de considerações epistemológicas, que fazem parte integrante do texto e que é necessário levar em conta durante a leitura para captar o seu método de investigação. É este aspecto, aliás, que irrita os numerosos pseudo-sociólogos que fazem da sociologia uma arma de combate ideológico, desprezando a lógica interna de uma ciência. Em particular, Weber não abordou a noção de capitalismo com o parti pris do sectário que começa lançando sobre o sistema econômico a culpa por todos os pecados da terra. Deste ponto de vista ele até é mais fiel a Marx que os soi-disant marxistas contemporâneos que povoam as universidades, pois um dos mais belos elogios do capitalismo está justamente assinado por Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista. É verdade que, em certos meios, existe o costume de se ler Marx tão mal quanto Weber. Contudo, os preconceitos atuais nunca chegarão a obliterar o fato de que o capitalismo não somente transformou a economia em profundidade, mas também deu nova fisionomia à civilização (este é um ponto no qual Weber insiste várias vezes). Além disso, o socialismo nasceu do capitalismo, o que quer dizer que não seria compreensível o socialismo sem o capitalismo e que talvez o fim deste também signifique o fim daquele. O socialismo não é o contrário do’capitalis-mo, como se crê, mas tem este em seu coração.
A atitude científica de Weber consiste em reconhecer que o capitalismo é um fenômeno histórico de primeira grandeza. Isso posto — e como não o reconhecer, a não ser de má fé? — indaga-se acerca da origem deste capitalismo moderno. Também é in- discutível historicamente que ele nasceu em certos meios religiosos que, por preconizarem uma conduta ética racional, introduziram essa racionalidade na gestão econômica. Assim criaram um espírito novo, uma nova mentalidade, que favoreceu a eclosão do capitalismo moderno. É isto o que Weber denomina o espírito do capitalismo. Em todo caso, é esta questão e apenas ela que o interessa n‘A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em outras obras, especialmente na sua notável Wirtschaftsgeschichte (História da economia), já não se ocupa tanto com o espírito do capitalismo, mas com a maneira pela qual o capitalismo, enquanto instituição concreta, implantou-se material e historicamente no Ocidente. Não ignora absolutamente as contradições do capitalismo, mas tampouco o converte em uma salada ideológica, sabendo, sociólogo sagaz e lúcido, que toda instituição humana (inclusive o socialismo inevitavelmente comporta contradições. Existe um duplo erro espitemológico que se deve evitar. Consiste o primeiro em acentuar as contradições de um sistema para melhor dissimular as de outro.
O segundo está em criticar um sistema a partir de outro, por exemplo, criticar o socialismo a partir do capitalismo ou o inverso, pois as contradições do capitalismo não são as que se lhe pode imputar a partir do socialismo, mas as suas intrínsecas, no sentido de que a doutrina capitalista não é totalmente harmoniosa em si mesma.
O espírito do capitalismo
É no mesmo espírito que Weber aborda a análise do protestantismo e de suas diversas formas históricas e empíricas: o luteranis-mo, o calvinismo, assim como suas diversas fisionomias, por exemplo o purítanismo ou o metodísmo. Em nenhum momento tenta avaliar ontologicamente estas diversas religiões, proclamando por exemplo a superioridade do calvinismo sobre c luteranismo, ou o contrário. Esse tipo de avaliação compete aos crentes, não ao pesquisador. O problema deste é apreender no que tais doutrinas convergem e no que divergem quanto à ética,, e ao comportamento econômico, em que pontos se aproximam do catolicismo ou deles se afastam. Todas comportam, ademais, contradições. É por isso que escreve, à p. 188: "Não devemos esquecer que o puritanismo continha um mundo de contradições". Esta noção de contradição está ha própria base da distinção que estabelece entre a doutrina de Calvino e a pastoral dos pregadores calvinistas posteriores. Uma das passagens mais características se encontra à p. 105, quando mostra a dupla orientação da pastoral puritana, para superar as dificuldades e as contradições da doutrina. Mas Weber também precisa como a pastoral finalmente conseguiu vergar a doutrina primitiva e a sua dogmática, modificai do, portanto, no correr do tempo, a fisionomia desta religião. Com efeito, toda religião se desvia, ao passarem os séculos, do seu princípio original. Poderíamos acrescentar que, no fundo, .a ideologia moderna, à sua maneira, no contexto moderno, é como que um remanejamento da antiga pastoral, com o fim de tentar camuflar as contradições dá doutrina que lhe serve de base.

—É claro que não se poderia atribuir a Calvino o nascimento do capitalismo — nem a emergência, no século XVII, do puritanismo. Weber insiste a esse respeito: "É por isso que devemos admitir que os efeitos da Reforma sobre a cultura, em grande parte — ou mesmo, de nosso ponto de vista particular, na parte preponderante —, tenham sido conseqüências imprevistas, não desejadas, da obra dos reformadores — conseqüências às vezes muito afastadas de tudo o que eles se propuseram a atingir, às vezes até mesmo
em contradição com tais metas" (24). A história é feita de conseqüências não previstas e não desejadas, quando as comparamos com as Intenções dos agentes. O ascetismo pregado pelos pastores puritanos não era policial nos seus princípios, e no entanto, como observa Weber, "a vigilância absolutamente policial sobre a vida das pessoas, nas igrejas calvinistas estabelecidas, comparava-se à da Inquisição" (25). Outra conseqüência paradoxal, reside no fato de que, embora o purítanismo, como toda religião cristã, fosse atraído pela transcendência, para a ação ad majorem Dei Gloriam, na realidade, porém, contribuiu em ampla medida para a secularização do mundo moderno, orientando a civilização "para este mundo" (26).
Chegamos assim ao fundamento do pensamento epistemológico de Weber, que ele expôs com maior clareza no seu estudo sobre Die Objektivitaet sozialwissenschaftlicher und sozialpolitischer Erkenntnis (27). Na sociologia, importa considerar que toda atividade pode ser tanto condicionante quanto condicionada, simultaneamente ou na sucessão do tempo. A religião pode condicionar a economia, assim como pode ser condicionada por esta última; a ética pode condicionar a política ou por ela ser condicionada. A ideologia consiste em privilegiar unilateralmente um destes dois movimentos, proclamando por exemplo que toda a vida social seria condicionada pela economia, de modo que a religião, a moral ou o direito não passassem de meras superestruturas da economia. Seria travestir a realidade histórica não reconhecer o império que" exercia a religião sobre os espíritos, no século XVI, no qual a fé foi tão intensa que suscitou as guerras de religião. A economia não passou de um papel secundário nesta questão. Não esteve ausente dela, mas não constituí a sua explicação globalizante. Por isso Weber nunca cessou suas advertências. "Está fora de questão sustentar uma tese tão pouco razoável e tão doutrinária, que pretendesse que o espírito do capitalismo(…) não passaria de resultado de certas influências da Reforma, chegando mesmo a afirmar que o capitalismo enquanto sistema econômico é uma criação dela (28)." ‘
Ou ainda, "temos dç nos livrar da idéia de que a Reforma pode ser deduzida como historicamente necessária, a partir de transformações econômicas" (029). Ou, finalmente: "Será necessário protestar que o nosso desígnio não é, absolutamente, substituir uma interpretação causai e estritamente materialista da história por uma interpretação espiritualista da civilização e da história, que não seria menos unilateral que a outra? (30). Infelizmente, comentaristas em excesso não levaram em conta essas precau ções, embora tão explícitas.
A primeira condição para a leitura cien tífíca de uma obra, como agora a de Weber. é que a compreendamos com suas próprias categorias e não a partir de outras que lhe sejam exteriores, ou de um a priori que desfigure o seu pensamento. Esta confusão está na base de certas controvérsias inúteis} que terminam dando em nada do ponto de vista científico. Isso posto, seria estúpido negar que também existem contradições no pensamento de Weber, mas só conseguire mos extraí-las e delimitá-las se nos dermos ao trabalho de conhecer bem o que ele disse e escreveu efetivamente, em vez de lhe atribuirmos dizeres que não são os seus. Este é até o primeiro dever da probidade íntelec tual. (Tradução de Renato Janine Ribeiro)
Notas
(1) Vocação ou profissão.
(2) Veja-se o texto "Dit protesrantische Ethik und dar Geist des Kapiralismus", In Max Weber, Gesammelte Aufsaetze zur Religionssoziologie, Tubinga, Mohr, 1947, t. I, pp. 192-193. Não havando outra menção, as referencias no correr do artigo são a esta obra. (N. do T.: Existe uma tradução brasileira, por Maria Irene Symrecsányi e Tomás Szmrcsányi, dasta obra da Webar: A Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo, São Paulo, Pioneira, 1968. Dois capítulos dela foram incluídas no volume Weber de Os Pensadores, editora Abril; uma nova edição do livro foi lançada este ano pela Editora Universidade da Brasilia.)
(3) Ibid. p. 117.
(4) Entra outras, à p. 89 nota 1, à p. 106 nota 1. p. 123, ou, ainda, è p. 163.
(5) E neste sentido que se deve entender a frase de Weber: "As indústrias então nascentes foram, na maior parte, obra de novos-ricos", p. 50.
(6) Isto é, a doutrina de que a salvação se dá apenas pela fé (N. do T.).
(7) Ibid,, p.123.
(8) Ibid., p.111.
(9) Weber, porém, não exclui que a mística possa constituir uma fonte de racionalidade, mas uma mística diferente em sua natureza da do calvinista. Ver as pp. 107-106.

(10) Ibid.. p. 175, nota 2.
(11) Ibid., pp. 175-176.
(12) Ibid., p. 195.
(13) Ibid., p. 124.
(14) Ibid., p. 203.
(15) Ibid. p. 197.
(16) Ibid., p. 204.
(17) Ibid , p. 127.
(10) Ibid., p. 122, nota 2.
(19) Ibid, p. 79.
(20) Importantes banqueiros alemães do século XVI; entre outros investimentos financiaram em 1519 a eleição de Carlos V como imperador Romano-Germânico, que mais tarda condenaria e tentaria perseguir Lutero (N. do T.).
(21) Ibid., pp. 73-74. (22) Ibid., p. 63.

(23) Ibid., p. 80
(24) Ibid., p. 82.
(25) Ibid., p. 161.
(26) Ibid., p.82.
(27) Veja-se Max Weber, Gesammelte Aufsaetze zur Wis senschaftslehre, Tubinga, Mohr, 1951, p. 162.
(28) Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalis-mus, p. 83.
(29) Ibid., p.83.
(30) Ibid., p. 205.
O Autor — Julien Freund é sociólogo, tradutor e introdutor das obras de Max Weber na França. Leciona na Universidade de Strasbourg.