quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Texto de apoio: Justiça (turmas de direito)

(gr. ôiKouoaúvri; lat. Justitia; in. Justice, fr. Justice, al. Gerechtigkeit; it. Giustizià). Em geral, a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem. Podem-se distinguir dois significados principais: l: J. como conformidade da conduta a uma norma; 2: J. como eficiência de uma norma (ou de um sistema de normas), entendendo-se por eficiência de uma norma certa capacidade de possibilitar as relações entre os homens. No primeiro significado, esse conceito é empregado para julgar o comportamento humano ou a pessoa humana (esta última, com base em seu comportamento). No segundo significado, é empregado para julgar as normas que regulam o próprio comportamento. A problemática histórica dos dois conceitos, ainda que frequentemente interligada e confundida, é completamente diferente. No primeiro significado, a J. é a conformidade de um comportamento (ou de uma pessoa em seu comportamento) a uma norma; no âmbito deste significado, a polêmica filosófica, jurídica e política versa apenas sobre a natureza da norma que é tomada em exame. Esta pode ser de fato a norma natural, a norma divina ou a norma positiva. Aristóteles diz: "Uma vez que o transgressor da lei é injusto, enquanto é justo quem se conforma à lei, é evidente que tudo aquilo que se conforma à lei é de alguma forma justo: de fato, as coisas estabelecidas pelo poder legislativo conformam-se à lei e dizemos que cada uma delas é justa" (Et. nic, V, 1, 1129 b 11). Neste sentido, segundo Aristóteles, a J. é a virtude integral e perfeita: integral porque compreende todas as outras, perfeita porque quem a possui pode utilizá-la não só em relação a si mesmo, mas também em relação aos outros (Ibid., 1129 b 30). Mas também as duas formas da J. particular que Aristóteles enumera, que são a distributiva (v. DiSTRiBunvo) e a corretiva ou comutativa (v. COMUTATIVO), consistem em conformar-se a normas, mais precisamente às que prescrevem a igualdade entre os méritos e as vantagens ou entre as vantagens e as desvantagens de cada um. A definição de J. feita por Ulpiano, adotada pelos jurisconsultos romanos (Dig., I, 1, 10) como "vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu" é outra maneira de expressar a noção de justiça como conformidade à lei, visto pressupor que o que cabe a cada um já está determinado por uma lei. Kelsen tachou essa definição de tautológica por não conter indicação alguma sobre o que é o "seu" de cada um (.General Theory of Law and State, 1945, I, I, A, c, 2); na realidade, prescreve apenas a conformidade a uma lei ou regra que estabeleça exatamente aquilo que cabe a cada um. A noção de conformidade à lei como definição de J. é uma constante mesmo naqueles que se opõem ao conceito tradicional de justiça. Assim, Hobbes afirma que a J. consiste simplesmente na manutenção dos pactos, e que, portanto, onde não há Estado como poder coercitivo que assegure a manutenção dos pactos, não existe J. nem injustiça (Leviath., I, 15). Mas também neste caso a J. não passa de conformidade a uma regra, mesmo em se tratando de uma regra simplesmente pactuada. Mesmo a interpretação feita por Kant da definição romana reduz a J. ao respeito a uma norma já estabelecida: "Se aquela fórmula fosse traduzida por 'dar a cada um o que é seu', estaria dizendo um absurdo, pois não é possível dar a alguém o que já tem. Para ter sentido deve ser assim expressa: inclui-se numa sociedade em que a cada um possa ser garantido o que é seu contra qualquer outro" (Lex justitiaê) (Met. der Sitten, I, Divisão da doutr. do Dir., A). Por outro lado, também aqueles que não vêem no conceito de J. nada mais além da tentativa de justificar determinado sistema de valores, pretendendo expungi-lo da teoria científica do direito, utilizam ou adaptam a mesma noção de justiça. Kelsen diz: "J. significa a manutenção de uma ordenação positiva mediante sua conscienciosa aplicação. Ela é J. segundo o direito. A proposição segundo a qual o comportamento de um indivíduo é justo ou injusto no sentido de ser jurídico ou antijurídico significa que seu comportamento corresponde ou não à norma jurídica que é pressuposta como válida pelo sujeito judicante por pertencer a uma ordenação jurídica positiva" (General Theory, cit., I, I, A, c, 5, trad. it, p. 14). Esse conceito de J. não está submetido às consequências resultantes das diferenças, mesmo as mais substanciais, entre as doutrinas do direito. Quer se entenda a norma como norma de direito natural, quer como norma moral ou de direito positivo, a J. é sempre considerada conformidade do comportamento à norma. No segundo conceito, a J. não se refere ao comportamento ou à pessoa, mas à norma; expressa a eficiência da norma, sua capacidade de possibilitar as relações humanas. Neste caso, obviamente, o objeto do juízo é a própria norma, e desse ponto de vista as diferentes teorias da J. são os diferentes conceitos do fim em relação ao qual se pretende medir a eficiência da norma como regra para o comportamento intersubjetivo. Platão foi o primeiro a insistir na J. como instrumento. Sócrates pergunta a Trasímaco: "Acreditas por acaso que uma cidade, um exército, um grupo de bandidos ou de ladrões, ou qualquer outro amontoado de pessoas que se ponha de acordo para fazer algo de injusto, poderia chegar a fazer alguma coisa se « os seus integrantes cometessem injustiça uns para com os outros? — Não, de certo, respondeu Trasímaco. — E se não cometessem injustiça, não seria melhor? — Seguramente. — A razão disto, Trasímaco, é que a injustiça dá origem a ódios e lutas entre os homens, enquanto a j. produz acordo e amizade" {Rep., 351 c-d). Neste trecho a J. é desvinculada de qualquer objetivo que tenha valor privilegiado: ela não passa de condição para possibilitar a convivência e a ação conjunta dos homens: condição que vale para qualquer comunidade humana, mesmo para um grupo de bandidos. Da mesma forma, no mito exposto a Protágoras no diálogo homônimo, Platão diz que, enquanto os homens não tiveram a arte da política, que consiste no respeito recíproco e na J., não puderam reunir-se em cidades e eram destruídos pelas feras. "Apesar de ajudá-los a obter alimento, a arte mecânica não lhes era suficiente para combater as feras porque eles não possuíam a arte política, de que faz parte a arte da guerra" (Prot., 322 b-c). Com mais frequência, porém, filósofos e juristas não mediram a J. das leis tomando como referência a sua eficiência geral no que diz respeito às possibilidades de relações humanas, mas a sua eficiência em garantir este ou aquele objetivo considerado fundamental, ou seja, como valor absoluto. Não faltou portanto quem julgasse impossível definir a J. nesse sentido, limitando-se a propor a exigência genérica de que, para ser justa, uma norma deve adequar-se a um sistema de valores qualquer (CH. PERELMAN, De Ia justice, 1945, trad. it., 1959). Todavia, os fins aos quais se recorreu com mais frequência são: d) felicidade; ti) utilidade; c) liberdade; d) paz. d) Foram os filósofos que mais recorreram à felicidade. Aristóteles diz: "As leis promulgadas sobre qualquer coisa visam à utilidade comum a todos ou à utilidade de quem se destaca pela virtude ou por outra forma; desse modo, com uma só expressão definimos como justas as coisas que propiciam ou mantêm a felicidade ou parte dela na comunidade política" (Et. nic., V. 1, 1129 b 4). A identificação do bem comum com a bem-aventurança eterna é um caso particular dessa doutrina (S. TOMÁS, De regimine principum, III, 3). ti) Já na antiguidade (p. ex., para os sofistas e para Carnéades) a J. foi identificada com a utilidade. No mundo moderno, Hume impôs eficazmente esse ponto de vista: "A utilidade e o fim da J. é propiciar a felicidade e a segurança, mantendo a ordem na sociedade" (Inq. Cone. Morais, III, 1). A redução da J. à utilidade, e não à felicidade, tem a característica de eliminar o caráter de fim último ou valor absoluto, levando a considerá-la como solução (às vezes a menos pior) de determinadas situações humanas. É o que pensa Hume, corrigindo nesse aspecto o jusnaturalismo racionalista de Grócio, que à J. atribuía valor absoluto, e às normas que a garantem, absoluta racionalidade, pois para ele "as relações mútuas de sociedade" possibilitadas por tais normas eram fins em si mesmas, porque objeto último de desejo (De jure belli aepacis, Intr., § 16). c) Foi Kant quem identificou J. e liberdade. "A tarefa suprema da natureza em relação à espécie humana" é uma sociedade em que a liberdade sob leis externas esteja unida, no mais alto grau possível, a um poder irresistível, o que é uma constituição civil perfeitamente justa (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, 1784, Tese V). Segundo esse ponto de vista, o iluminismo é a condição que derivará da progressiva eliminação dos obstáculos opostos à liberdade da espécie humana (Jbid., Tese VIII). d) Por fim, além da felicidade, da utilidade e da liberdade, os filósofos tomaram frequentemente a paz como medida ou critério da J. de uma ordenação normativa. Esse parâmetro foi introduzido por Hobbes: para ele, é justa a ordenação que garanta a paz, afastando os homens do estado de guerra de todos contra todos, em que vivem no "estado natural". De fato, para Hobbes a primeira lei da natureza, a primeira das normas que permite afastar o homem do estado de guerra é a que prescreve perseguir a paz. "Para a igualdade de forças e de todas as outras faculdades humanas, os homens que vivem no estado natural, isto é, no estado de guerra, não podem pretender que sua conservação seja duradoura. Por isso, tender para a paz enquanto brilhar alguma esperança de obtê-la, e só recorrer à guerra quando isso não for possível, é o primeiro ditame da boa razão, a primeira lei da natureza" (De eive, I, § 15). No séc. XX, Kelsen contrapôs à J. como "ideal irracional" a paz como medida empírica da eficiência das leis: "Uma teoria pode fazer uma afirmação com base na experiência: só uma ordenação jurídica que não satisfaça aos interesses de uns em detrimento de outros, mas que chegue a uma conciliação entre os interesses opostos, que reduza ao mínimo seus possíveis atritos, pode contar com uma existência relativamente duradoura. Só uma ordenação dessa espécie estará em condições de assegurar a paz social em bases relativamente permanentes a todos os que se lhe submetem. Embora o ideal de J. em seu significado originário seja totalmente diferente do ideal de paz, existe nítida tendência a identificar os dois ideais ou ao menos a substituir o ideal de J. pelo de paz" {General Theory, cit., I, I, A, c, 4; trad. it., p. 14). Essa tendência, partilhada por muitos que julgam irrealizável o ideal de J. como felicidade ou liberdade, tende a julgar a eficiência das normas com base em sua funcionalidade negativa, ou seja, em sua capacidade de evitar conflitos. Sem dúvida, conforma-se mais ao espírito positivo de uma teoria do direito que pretenda ter como objeto nada mais do que a técnica da coexistência humana. Mas na realidade o jusnaturalismo moderno, a partir de Grócio, já havia alcançado, pelo menos nesse aspecto, uma generalização maior, exigindo que as normas do direito natural servissem tanto para a paz quanto para a guerra, e que pudessem, pelo menos em parte, valer para qualquer condição ou situação humana. Portanto, do ponto de vista da teoria geral do direito, mesmo a paz pode mostrar-se como objetivo restrito demais para julgar da eficiência (isto é, da J.) das normas do direito. A guerra, assim como os conflitos individuais e sociais, as competições, etc, constituem situações humanas recorrentes, mesmo que indesejáveis; portanto, um juízo objetivo e sem preconceitos sobre as normas de direito deve medir sua eficiência também com relação a tais situações e às possibilidades de superá-las. Na realidade, é possível aduzir apenas dois critérios como fundamento de um juízo objetivo sobre ordenações normativas, visto que só eles valem não como fins, absolutos ou relativos, mas como condições de validade de uma ordenação qualquer. O primeiro, já bastante conhecido na tradição filosófica, é o de igualdade como reciprocidade, segundo o qual cada um deve esperar dos outros tanto quanto os outros esperam dele. Na maioria das vezes em que a tradição filosófica definiu a J. como igualdade (o que fez com frequência a partir dos pitagóricos), pretendeu ressaltar esse mesmo caráter da J., o de reciprocidade (cf. p. ex., HOBBES, Leviath., I. 14; De eive, III, § 6). O segundo critério pode ser deduzido do caráter fundamental que garante a validade do saber científico no mundo moderno: a autocorrigibilidade. Assim como o conhecimento científico se define como tal só quando organizado com vistas à sua própria verificação e, portanto, à sua autocorrigibilidade, também uma ordenação normativa define-se como tal (ou seja, consegue ser eficiente como ordenação) só quando é organizada com vistas à sua eventual autocorreção. Os dois critérios citados, com as variações devidas, também podem integrar-se. Podem conferir à palavra J. um significado tão distante do ideal transcendente e da aspiração sentimental quanto da justificação interessada das ordenações em vigor. Não se deve esquecer também que a mais eficaz e radical defesa de determinada ordenação ne varietur não foi feita pela demonstração, ou tentativa de demonstração da J. de tal ordenação, mas simplesmente ignorando-se e eliminando-se a própria noção de justiça. De fato, é isso o que acontece na filosofia do direito de Hegel, que considera o Estado como Deus realizado no mundo e nega até a possibilidade de discutir a ordenação jurídica sob qualquer aspecto. Hegel dizia: "O direito é algo sagrado em geral porque é a existência do Conceito Absoluto" (Fil. do dir., § 30). O emprego do conceito de J. no segundo significado é o exercício do juízo, que deve ser possível para todos os homens livres, sobre as ordenações normativas que os regem. Que hoje esse juízo não pode ser exercido com base em noções tautológicas ou ideais quiméricos é fato reconhecido. Mas também é fato que ele pode e deve tornar-se objeto de uma disciplina específica que o torne positivo e o mais rigoroso possível, sem subtraí-lo às suas condições empíricas. Desse forma, o conceito de J. ainda pode reassumir a função que sempre teve: a de instrumento de reivindicação e de libertação. Para a distinção das várias espécies de J., v. os verbetes: ATRIBUTIVA, JUSTIÇA; COMUTATIVO; DISTRIBUTTVO.

Fonte:Abbagnano, Nicola: Dicionário de FIlosofia.São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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