Tragédia como
metáfora
O conceito de
tragédia como o encontramos na introdução do livro A morte da tragédia, de George Steiner, abre a possibilidade de uma
compreensão profunda do que venha a ser arte. No texto lemos: “os poetas
trágicos gregos afirmam que as forças que modelam ou destroem nossas vidas
estão fora do controle da razão e da justiça”. Dizer isso é afirmar que as
forças que conduzem nossa existência estão fora de qualquer possível controle.
É preciso, entretanto, atentar para o que significa controle. Dentre seus vários
possíveis significados, gostaria de tomar um e trabalhar com ele aqui: o nomear.
Nomear algo e julgar conhecê-lo pelo nome é uma forma de controle. Quando
nomeio cadeira a um objeto construído por mim e sobre o qual me sento para
descansar ou jantar, determino seu sentido, seu significado e, com isso,
controlo tal objeto. Não me preocupo mais com qualquer outra possibilidade de
aparecer, de acontecer daquele objeto, pois, sabendo seu nome, sei como sempre
vai aparecer para mim e para qualquer outra pessoa: como algo sobre o que se
senta. Podemos dizer a mesma coisa sobre outros objetos, como a mesa, a
prateleira, a panela, a lata etc. Basta sabermos seus nomes e suas definições
para termos controle sobre eles. Isso se aplica à imensa maioria dos casos em
nosso cotidiano. Sabemos o nome das coisas, usamos as coisas e, assim, as
coisas não nos surpreendem. Por conta disso, perdemos de vista o caótico, o
inusitado, o admirável que está contido em estado de potência em cada objeto. Se
nós nos esquecemos disso, as crianças bem pequenas ainda não se esqueceram.
Quem já pôde observar um bebê descobrindo o mundo, pegando coisas a sua volta
ou apenas olhando para elas, sabe com que espanto e admiração ele lida com tudo
que vê e toca. Isso porque aquilo que ele toca ou vê surge para ele ainda em
seu anonimato, na força de sua primeira aparição, ou seja, sem controle. Ele
fica encantado com o simples fato de aquilo que ele vê ou toca surgir na frente
dele, com o simples fato de aquilo existir. A adultidade nos tira isso. As
coisas perdem seu encanto para nós. Isso, contudo, não significa que elas não
possam ainda nos encantar. Mas o que poderia destravar essa habilidade
esquecida de encantamento, o que poderia quebrar a casca do nome para, de
dentro dele, surgir como surpresa outra possibilidade do objeto, outra
possibilidade para a qual não tenhamos nome ainda? Para pensarmos sobre isso,
vejamos o texto da música Metáfora de Gilberto Gil
Metáfora
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
Parece
que o poeta traz algo para o objeto, no caso, a lata, que retira dele seu nome,
sua definição, sua serventia e destranca a arca de possibilidades, podendo
fazer caber na lata o incontível. Mas o que é isso que ele traz? Ele traz a
infância da coisa, ele traz sua tragédia, sua abertura para o encantamento. Ele
desfaz a adultidade do olhar e nos permite olhar mais uma vez como criança. Aí,
então, o objeto se mostra mais rico do que poderíamos julgar, mais bonito do
que poderíamos ver, mais pleno de vida do que poderíamos sentir. No que eu
expresso assim o desmantelamento da casca das coisas, parece que isso é
desejável e sempre é algo bom. No entanto, isso é desesperador e é justamente
algo de que sempre fugimos. Nós, em nossa vida cotidiana, em nossa busca por
tranquilidade, fugimos constantemente da poesia e de sua tragicidade. Por quê?
Ora, para nos acostumarmos com o mundo a nossa volta, precisamos nomeá-lo,
conhecê-lo. Ao o conhecermos e nos acostumarmos com ele, ficamos tranquilos,
sentimo-nos, finalmente, em casa. Quando vejo um ônibus, fico contente em saber
o que é um ônibus, para que ele serve e como devo me portar com ele, queira eu
subir nele ou não; do mesmo modo, quando me encontro com o João, fico contente
em saber quem é o João, como ele é, qual seu signo. Esse contentamento é
primordial, ele é anterior a qualquer bem-querer ou malquerer. É fundamental
que eu saiba por que não gosto de andar de ônibus, por que não gosto do João,
por exemplo. Não saber por que não gosto seja de andar de ônibus seja do João,
dependendo da intensidade, pode ser perturbador, grandemente inquietante. É
sempre um conforto saber ou, pelo menos, julgar saber por que não gosto de algo
ou alguém. A tragédia quebra todo esse saber e nos arrasta para a infância,
onde, embora fiquemos encantados com tudo, não sabemos nada, não julgamos saber
nada e, portanto, somos completamente indefesos. Para a infância não há nome,
não há certeza, não há deus, não há salvação; para a criança não há nada disso
também, mas ela não precisa, pois não há ainda vontade de controle, não há
medo, não há precisão de nada sobrenatural, não há condenação. Nós, porém, não
podemos voltar a ser criança, podemos apenas, por meio da tragédia, por meio da
arte, voltar à infância do mundo, mas ao fazermos isso, ainda trazemos conosco
os medos e pavores que a vida adulta nos incute. Justamente por essa razão é
desesperador olhar para as coisas como se elas tivessem surgido no exato
momento em que olhamos para elas. Desse modo, sabiamente reservamos esse olhar
límpido de criança para alguns objetos específicos: as obras de arte. Na arte,
a tragédia reina e traz à tona da realidade possibilidades esquecidas dos
objetos em geral; mais que isso, ela permite um renascimento da coisa, como se
só agora tal coisa realmente existisse.
Alexander de Carvalho
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