domingo, 12 de junho de 2011

“Até que a morte vos separe”




            Ouvimos a frase e já nos rimos de sua antiguidade. Houve um tempo em que ela tinha seu lugar, mas há muito foi banida. Hoje a achamos ridícula, e talvez tenhamos razão. Tenhamos também, contudo, ainda um pouco de hospitalidade e perguntemos: “-Por que esta frase soa agora tão ridícula?” Ora, ela é uma frase tradicional e participou da felicidade de muitos e manteve outros tantos sob a necessidade de, ao menos, aparentarem felicidade. Ela não é, portanto, uma frase qualquer.
            Com não ser uma frase qualquer, qual a sua distinção? Ela é dita pelo padre na ora em que abençoa a união de um homem e uma mulher, união que, de acordo com ela, deve ser eterna. A frase é uma benção. Ela incumbe o casal da responsabilidade de manter-se junto em todo o momento, só se separando com a morte de um ou outro. O casal aceita essa incumbência e, com ela, a responsabilidade. Mas aceita sabendo que responsabilidade é essa?
            Esperemos ainda um pouco para chegarmos a qualquer resposta. Tomemos a situação em que a frase é dita; não, ainda melhor, vamos um pouco atrás e vejamos o que faz o casal chegar diante do padre para dele ouvir: “ – Até que a morte vos separe”.
            Um dia, um homem e uma mulher se conhecem. De cara, um acha o outro interessante, ou não. De qualquer modo, eles se conhecem e, sabe-se lá por que, passam a namorar. Daí eles se tornam íntimos, conhecem-se melhor e tomam a partir do que conhecem um do outro e a partir do que conhecem de si mesmos, tomam a decisão de se casar. Vão então para diante do padre e ouvem a frase: “- Até que a morte vos separe”.
(antes de continuar, gostaria de observar-lhes que esse “vão então para diante do padre” não quer necessariamente dizer vão então para diante do padre. Pode ser que não haja padre, que não haja pastor, que não haja rabino, que não haja quem diga a frase, mas ela continua ali onde os dois se comprometem e, mesmo não ouvida, ainda assim é o que orienta a união dos dois).
            Como estava dizendo, eles vão e ouvem a tal frase, e concordam com ela. Aliás, concordaram com ela desde que se decidiram pelo casamento. Sendo assim, o importante é essa decisão, e como nós sabemos, ela foi tomada a partir do que os dois conheciam um do outro e um e outro de si mesmos. Importa-nos, portanto, saber o que é isso que eles conheciam.
            O que passa pela cabeça de alguém que decide se casar é mais ou menos o seguinte: “- Bem, conhecendo-o como o conheço, posso muito bem casar-me com ele”; e assim também pensa o homem com relação à mulher. Com isso, casa-se cada um com uma pessoa que conhece e só se casa porque a conhece. Os dois, portanto, são sinceros. Entre pensar tal como supus acima que pensassem e tomar a decisão de se casar há ainda um pensamento que se não é tido provavelmente causará problemas a quem não o teve, porque há um lugar certo para ele: “- Se ele continuar sendo o que ele é e eu continuar sendo o que sou, nós nunca nos separaremos”. O problema é que, embora tenha ele um lugar privativo entre o achar que pode casar-se e a decisão de casar-se, ainda assim esse pensamento raramente ocupa esse lugar. Pois se ele toma seu lugar, surge o cuidado principal para um casamento: a necessidade de um e outro continuarem sendo o que são um para o outro. Apesar disso, se não há tal pensamento, não há consequentemente tal cuidado e dificilmente há casamento duradouro.
            Os casamentos não duram e isso não é só de hoje, o que agora acontece é que todos veem que eles não duram, mas o homem é um só em todo o tempo e em todo o lugar. O que ora acontece é os olhos verem o que há muito se escondia sob aparências: a falência matrimonial. E não é precisamente essa falência o que fez a nós, homens do presente, parecer ridícula a frase “até que a morte vos separe”? Sim, os casamentos dissolvem-se e a frase perde seu sentido. Ah! Que engano, muito pelo contrário, seu sentido afirma-se aí em toda a sua precisão.
            Quando os dois decidiram se casar partindo do que conheciam um do outro e não levaram em consideração o que não conheciam, ou seja, que um e outro poderiam deixar de ser o que eram, e isso principalmente se ambos não cuidassem em manter-se um para o outro e cada qual para si o que eles eram, se não houve tão consideração e nem o cuidado, não há surpresa se de repente um casal extremamente apaixonado e feliz dissolve-se em desavenças e, quem sabe, em ódio.
            O que houve, aliás, o que não houve? Não houve a consideração, não houve cuidado. Primeiro não consideraram o que um não conhecia do outro, e depois não cuidaram em manterem-se os mesmos um para o outro e cada qual para si. Amaram-se e foram sinceros em seu amor, prometeram e foram sinceros em sua promessa, mas descuidaram-se e foram sinceros com a decadência de seu amor e de sua promessa.
            A frase permanece e é profética: “até que a morte vos separe”. Um ou outro acaba por morrer quando por descuido deixou de ser o que era tanto para si quanto para o outro. “-Ele não é mais o mesmo”; “- Ela não é mais a mesma”; “- Ele morreu para mim”; “- Ela morreu para mim”, e a morte os separou. 

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