terça-feira, 1 de maio de 2012

Migalhas do capitalismo


E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.



"Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção."

Vinícius de Morais, Operário em Construção (trecho)


    O texto citado diz respeito a uma possível resposta do trabalhador aos avanços do capitalismo. Essa resposta, sabemos, não foi dada. Em seu lugar, aceitamos a oferta do capitalista (aqui comparado à figura do Diabo). Podemos ver isso com as "conquistas" dos trabalhadores no decorrer do século XX. Mais do que significarem uma conquista do trabalhador, significaram uma conquista do capitalismo. Ora, somente por meio da criação de dispositivos que permitissem aos trabalhadores continuarem seu trabalho, o capitalismo poderia equacionar suas contradições internas. Nesse sentido, tudo que conhecemos como melhorias e avanços nas relações trabalhistas são conquistas e avanços do capitalismo. As leis trabalhistas, a redução da jornada de trabalho, a criação de sindicatos, etc. Quando no poema o capitalista oferece ao operário várias melhorias para as condições de seu trabalho, o operário, que aí já é operário construído, não mais em construção, ele diz não. E diz não justamente por a oferta ser absurda, já que o que lhe era oferecido eram apenas migalhas diante de tudo o que ele via e isso mesmo já era dele. No nosso caso, nosso operário histórico ainda está em construção. Ele não sabe que as coisas são dele. Por isso aceitou as migalhas que o capitalismo lhe ofereceu. 
    O capitalismo é uma estrutura que funciona à revelia de vontades individuais. Quando menciono o capitalista, principalmente quando comparado ao Diabo, não pretendo fazer nenhum julgamento moral. O empresário particular não é "o capitalista". O capitalista não é uma pessoa, é um papel que pode ser desempenhado por qualquer um. Esse papel é importante para a peça e para o teatro como um todo, mas pode não guardar nenhuma relação com o individuo que o desempenha. Desse modo, também os trabalhadores são papeis representados por indivíduos que, para atuarem no capitalismo, precisam desempenhar justamente esse papel. O capitalista não se contrapõe ao trabalhador. Ambos são personagens necessárias para a estrutura capitalismo acontecer. Há um equilíbrio que vai sendo criado na relação entre o trabalhador e o capitalista. Esse equilíbrio responde a um bem maior: a manutenção do capitalismo. As exigências de melhores condições de vida e de trabalho não visam abolir ou revolucionar o capitalismo, na verdade partem precisamente de sua aceitação. Tais exigências respondem, então, às necessidades do próprio capitalismo, para a sua perpetuação. As contradições gritantes apontadas por Marx foram minimizadas (ou maquiladas) por esses “avanços trabalhistas”. Esses avanços e vitórias, aliás, são do próprio sistema capitalista que soube abarcar o que lhe atacava e neutralizar sua força. Nesse sentido, todas as formas de luta para minimizar explorações e participar das conquistas do capitalismo são veículos de equilíbrio que atendem às necessidades de remodelação para perpetuação. Quando o capitalista cede, seja ao operário, seja ao meio ambiente, ele cede atendendo a uma requisição do próprio capitalismo para que ele se perpetue. O não cuidado com o operário poderia levá-lo a um estado de descontentamento extremo que o faria recusar-se a ser explorado. Nenhum outro modo de produção mostrou tanta flexibilidade quanto o capitalismo. Por isso ruíram e, quase sempre, de forma violenta pela tomada do poder por quem já tinha força suficiente para deixar de ser explorado e passar a explorar. Do mesmo modo, o não cuidado com o meio ambiente pode impossibilitar o capitalismo, pela falta de matéria prima. O cuidado com o operário e com o meio ambiente atende, assim, a duas requisições de manutenção do sistema capitalista: por um lado permitem a manutenção do status quo, por outro agregam valor ao produto de comercialização: ele passa a ter o selo de responsabilidade social e ambiental, tornando-o mais lucrativo.

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